Ficção histórica que inspirou Roy Thomas a criar sua Sonja
É um fato bem conhecido que Robert E. Howard (1906-1936) foi um escritor prolífico dos pulps, deixando como legado muito mais criações além da sua mais famosa. A menção de seu nome já traz automaticamente a lembrança de Conan, O Bárbaro, mas existe uma galeria de personagens considerável que saiu de sua mente, com tipos bem diferentes entre si. O puritano vingador Solomon Kane é um desses, que, felizmente, também tem seus contos disponíveis para o leitor brasileiro. Por conta da popularidade dos quadrinhos de Conan, talvez a personagem mais popular depois dele seja a guerreira ruiva Sonja, que divide o mesmo universo.
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Diferente do que alguns poderiam deduzir, Sonja foi criada por Roy Thomas, especificamente para os quadrinhos. Só que, indiretamente, pelo menos, essa criação também tem mais a ver com o trabalho de Howard do que parece em um primeiro momento. Em A Sombra do Abutre (The Shadow of Vulture), publicado pela Arte & Letra já há algum tempo, os fãs do subgênero espada & feitiçaria podem encontrar a inspiração para a feroz ruiva de Thomas. Porém, o contexto é bem diferente das aventuras da Era Hiboriana.
Publicada originalmente em 1934, na revista The Magic Carpet Magazine, trata-se de uma ficção histórica, no estilo que hoje encontra em Bernard Cornwell (As Crônicas de Artur, também comentado no podcast) seu nome mais famoso. Sonya Rubra de Rogatino é uma coadjuvante que rouba a cena, dentro de uma narrativa com menos de 100 páginas, cuja aparência e temperamento foram usados em sua contraparte das HQ’s. A ruiva criada pelo escritor tem origem ucraniana e aparece em um momento em que Viena é cercada pelos turcos, no século XVI.
Figuras e eventos reais como ponto de partida
Os fatos que servem como pano de fundo para A Sombra do Abutre tem como figura central o sultão Suleiman (também grafado como Solimão em nossa língua), que comandou o Império Otomano de 1520 até sua morte. O perfil conquistador desta figura o levou a ambicionar territórios da Europa, colocando a Hungria como alvo, que, uma vez conquistada, garantiria a marcha dos turcos no continente. Em 1521, conseguiu uma posição chave, sitiando Belgrado, mas o exército otomano partiu para a conquista da Ilha de Rodes. Mais uma vitória.
Quando retomada, a campanha pela conquista da Hungria tem um episódio importante (para a História e para a narrativa de Howard) na Batalha de Mohács, em 1526. Presente no campo de batalha, testemunhou o triunfo de seu exército na mesma ocasião em que Luis II, rei da Hungria, morre durante sua fuga. Nos anos seguintes, os Habsburgos da Áustria retomam parte da Hungria, o que nos leva ao outro fato que serve à nossa ficção.
Em 1529, Suleiman e seu exército chegam às muralhas de Viena, com o sultão determinado a recuperar os territórios. Esses são os dois incidentes principais que criam o fio da trama de A Sombra do Abutre. Agora podemos, finalmente, falar do recheio desta pequena história e seu protagonista.
A premissa e seus personagens
A história começa entre a Batalha de Mohács e a marcha para Viena. Com emissários europeus em visita diplomática aos seus domínios, Suleiman dá uma demonstração de poder e arrogância encarcerando o grupo por meses. É na libertação da comitiva que um dos cavaleiros lhe chama atenção. Quando todos partem, ele se lembra. Trata-se do soldado que o feriu na Hungria, algo tomado como uma afronta quase blasfema no ambiente muçulmano.
Para o cavaleiro, no entanto, foi apenas mais um dia de trabalho. O germânico Gottfried von Kalmbach é um mercenário beberrão sem muitos escrúpulos, mas um guerreiro hábil e de compleição física impressionante. Mal sabia ele que Suleiman se lembraria, colocando o peso de sua cabeça em ouro como prêmio pela mesma. É aí que o título da história se justifica, quando o assassino destacado para a tarefa entra em cena.
MiKhal Oglu chefiava os akinjis, destacamento especial de cavaleiros a serviço do Islã. A particularidade deste personagem é a sua armadura, com grandes asas de abutre presas às ombreiras, que se abriam quando ele cavalgava. O homem cujo nome era sinônimo de terror para todo o oeste da Ásia, pegando a frase do próprio livro. Como von Kalmbach dirigiu-se a Viena, completamente alheio ao seu perseguidor, os personagens fictícios se encontrarão no cerco histórico à cidade.
É na urgência e tensão da defesa do perímetro vienense, com seus habitantes em evidente inferioridade numérica, que o protagonista encontrará a selvagem Sonya Rubra. A mulher luta por Viena com ferocidade, com um toque a mais de fúria por motivos pessoais. Robert E. Howard criou uma relação curiosa da guerreira com outra figura histórica. Sonya é apresentada como irmã de Roxelana, a favorita do harém de Suleiman. Esse é um dos motivos que lhe causa mais ódio pelos invasores.
A maravilhosa agilidade dos pulps
Gottfried von Kalmbach, Mikhal Oglu e Sonya são muito carismáticos. Junte isso ao contexto histórico, mais a economia textual característica dos pulps, e temos uma leitura muito atraente. Equilibrando o dinamismo narrativo com descrições precisas da opulência otomana e dos personagens, A Sombra do Abutre não perde tempo e joga o leitor no violento contexto da história.
No meio da energia das batalhas, onde quase nos sentimos caminhando por um chão repleto de cadáveres, temos o conhecimento necessário dos integrantes desta trama e dos eventos que os cercam. Nem mais ou menos, pois tentar desenvolvê-los demais neste curto espaço poderia ter comprometido a experiência da violenta aventura.
Pode frustrar somente pela diversão curta que proporciona, o que também é uma qualidade, já que terminar deixando um “gosto de quero mais” é algo perseguido por qualquer escritor deste segmento ou congêneres.
A edição brasileira
Contando com um esclarecedor prefácio escrito por Cesar Alcázar, autor de Cão Negro, comentando, inclusive, os motivos que levaram Robert E. Howard a escrever mais fantasia do que ficção histórica, a Arte & Letra entregou um belo trabalho, apesar da questionável decisão de não incluir a obra em uma coletânea. A tradução, quase sempre um problemas neste tipo título, é caprichada e merece o elogio. A revisão peca em um ou outro momento, mas bem de leve. Nada que prejudique a experiência ou que diminua a classificação final.
Por tudo isso, A Sombra do Abutre merece o lugar em sua estante. Seja você admirador dos trabalhos de Robert E. Howard ou fã dos romances históricos de Cornwell, vale recomendar por diversos motivos. Muito além da mera curiosidade pela inspiração por trás da Sonja de Roy Thomas, surpreende qualquer leitor que chegar a ele apenas por esse motivo.