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A Cidade & A Cidade – Além da metáfora!

É uma responsabilidade e tanto ser apontado como artista inovador, comparado com outra personalidade influente no meio. A expectativa gerada no público, atraído por essa propaganda, pode ser um problema, de acordo com a ideia criada a partir das referências usadas na promoção da obra. Falando em badalação e comparações com grandes autores, o inglês China Miéville tem chamado muita atenção entre os leitores de ficção científica, elogiado por gente como Neil Gaiman e se destacando em premiações importantes do gênero.

A Cidade & A Cidade - China Míéville

China Míéville

Nome de ponta em um segmento que se convencionou chamar de New Weird, que seria derivado do tipo de literatura que H. P. Lovecraft produzia, Miéville é um destacado militante de esquerda, fundador do partido Left Unity e professor universitário com PhD em Marxismo e Direito. Com dez romances no currículo e um livro de RPG, ele já se aventurou até nas HQ’s da DC, escrevendo roteiros para Hellblazer e Liga da Justiça. Seu primeiro livro, Rei Rato (King Rat, 1998), foi editado aqui em 2011 pela extinta editora Tarja, mas a editora Boitempo recolocou o autor à vista do leitor brasileiro, lançando o ganhador dos prêmios Arthur C. Clarke e Hugo, entre outros, A Cidade & A Cidade (The City & The City, 2009), há pouco mais de um ano. A obra aguenta o peso da expectativa?

Adquira a edição clicando na imagem abaixo!A Cidade & A Cidade

Ambientado em algum lugar de um Leste Europeu alternativo, em uma época indefinida, embora com muitas citações bem reconhecíveis da cultura popular, o romance nos apresenta duas cidades que existem em uma condição muito específica e estranha. Beszel e Ul Qoma funcionam como pequenos países, com idioma e costumes bem diversos, mas ocupam o mesmo espaço geográfico. As pessoas são treinadas desde cedo a reconhecer seus conterrâneos e a engenharia e design da cidade a qual pertencem, assim como ignorar – ou desver, na expressão local – quem ou o que é da outra. A Brecha, uma entidade fantasmagórica que nem os próprios cidadãos entendem, pune quem desrespeita essa lei, um delito denominado como “brecha”. Isso mesmo! Na narrativa de Miéville, esta palavra tem dois significados, percebidos pela inicial maiúscula ou não.

Não é uma leitura fácil, já que outros neologismos aparecem no texto para dar conta de falar sobre algo tão bizarro, como topolganger, termo que define essa inusitada coexistência. A Cidade & A Cidade não emperra a história para dar descrições convenientes, já que é narrado em primeira pessoa, lançando o leitor direto a esse mundo e obrigando-o a entender como aquilo funciona prestando atenção em tudo, como se fosse um estrangeiro recém-chegado. Dentro desta distopia que extrapola (muito) o conceito de fronteiras e bairrismo, acompanhamos o inspetor Tyador Borlú, às voltas com a investigação do assassinato de uma estudante estrangeira, encontrada em sua Beszel natal, porém, morta em Ul Qoma.

A Cidade & A Cidade

A mescla da ficção científica com uma trama detetivesca, na tradição noir, não é nova, mas é muito gratificante ver ambos os lados de uma história como essa funcionando em harmonia. Dividido em três segmentos, o primeiro custa um pouco a dizer a que veio, mantendo a curiosidade pelo ambiente, mas sem avançar muito no mistério que conduz o texto. A partir do segundo, o ritmo vai melhorando e segue com segurança até o fim, trazendo aquela tensão e dúvida pré-clímax que nos faz vislumbrar a sequencia como se fosse um filme, com direito a algumas reviravoltas bem vindas. Entregando resoluções convincentes para a trama policial e mais detalhes interessantes para formarmos nossa visão daquela situação, a narrativa recompensa – muito bem – o leitor que embarcou na experiência.

Julgando pelas convicções mais que assumidas do autor, além do caráter de discussão que a ficção científica carrega, é difícil evitar uma reflexão em cima do que aquilo pode significar, enquanto metáfora para situações reais. Israel X Palestina logo vem à cabeça e pode até ser uma interpretação válida, mas basta pensar na forma como vivemos no Brasil e nos deslocamos pelas ruas de nossas cidades, principalmente os moradores de grandes metrópoles, para encontrar uma ressonância um tanto mais próxima e pessoal. Ainda assim, o próprio Miéville procura deixar claro que aquilo não deve ser encarado como simples representação alegórica direta, declarando em entrevistas que isso diminui e enfraquece o escopo de qualquer obra, acabando com a sutileza e impedindo a visualização de outras linhas de significado.

Ecos de Philip K. Dick e Gabriel García Márquez!

Ecos de Philip K. Dick e Gabriel García Márquez!

É necessário citar que a naturalidade e a sutileza de A Cidade & A Cidade podem frustrar quem espera algo mais futurista. Na verdade, fora o próprio conceito principal onde tudo se desenrola, a descrição dos equipamentos é propositalmente sem graça, com muitas coisas já obsoletas para nós, mas absolutamente comuns por ali. Sob diversos aspectos, além dos óbvios Kafka e Raymond Chandler, citados nos agradecimentos, China Miéville também parece trazer em seu DNA de escritor alguns traços de Philip K. Dick e Gabriel García Márquez. Caso você conheça a série de TV Black Mirror, talvez considere uma boa ideia ele tentar escrever algum episódio dela.

A pergunta que fecha o segundo parágrafo já foi respondida. Ambicioso no conceito, sem perder-se na própria complexidade, A Cidade & A Cidade provoca em seu término a vontade de conhecer mais obras de China Miéville, que já estão programadas pela Boitempo, felizmente. Além disso, outra notícia interessante é que o canal BBC pretende adapta-lo em uma minissérie em quatro partes, o que gera curiosidade sobre como Beszel e Ul Qoma vão se parecer na tela da TV. Independente disso, não espere muito para visita-las através das páginas do livro.

A impressão será muito mais duradoura!

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