O conto de Edith Finch está à altura do hype
A pequena desenvolvedora Giant Sparrow conquistou respeito e até notoriedade já no seu primeiro jogo, o exclusivo de PS3, The Unfinished Swan. É ambientado num mundo de faz de conta, onde o protagonista precisava junto com o jogador, literalmente, pintar seu caminho por um game inicialmente todo em branco, afim de descobrir a própria história. O jogo me impressionou e encantou como poucos, e apesar da curta duração, acabou se tornando uma das minhas experiências mais memoráveis no console. Dessa forma, esperei ansiosamente pelo próximo lançamento da empresa e, desde que foi anunciado, What Remains of Edith Finch entrou na minha lista de mais desejados no PS4.
Felizmente, o hype não foi em vão. Aqui vemos a mesma estrutura de jogo, com uma historia contada em forma de episódios de um livro, e sem abandonar a fantasia como base da trama. Porém o lúdico mundo de conto de fadas e pinturas de um menino dá lugar a algo mais sombrio e complexo, com claras e variadas referencias literárias.
Como em um livro de contos, cada episodio é independente para seguir seus próprios rumos, e isso deu a Giant Sparrow liberdade para mesclar essas referências de forma única, surpreendendo o jogador a cada passo. Há um episódio, por exemplo, em que nos encontramos no delírio lovecraftiano de uma menina que é transportada por diversos corpos, para em seguida retornarmos a mansão da família de Edith, claramente inspirada na obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez.
Até mesmo um gato vira personagem aqui, e entre tempestades de vento que nos remetem a obra O Mágico de Oz e objetos voadores de Fantasia da Disney, temos também uma bem bolada homenagem aos quadrinhos de terror e fantasia que marcam a infância de tantas crianças – e aqui protagonizam um episódio surpreendente e intrigante.
Porém, apesar das referências citadas, o título está longe de se relacionar com os já desgastados lançamentos de terror em primeira pessoa que assolam o mercado. Longe disso, temos aqui uma narrativa que pretende tocar o emocional do jogador, através da exploração de um ambiente rico em detalhes e possibilidades de interpretação.
A força da ambientação é tanta que consegue nos levar da melancolia ao riso, passando pelo suspense, em poucas horas. Isso sem se perder ou soar forçado. Não é como se o jogo quisesse empurrar uma variedade de conteúdos incompatíveis entre si ao jogador.
Pelo contrário, apenas de se passar no mundo “real”, ele nos leva a uma viagem pelas fantasias e pequenas surpresas que, ao olhar da protagonista – e da criança que fomos – soam imensas. Coisa que o gameplay reflete com maestria, pois a intensidade do jogo é tanta que, mesmo tendo levado apenas uma tarde para finaliza-lo, a sensação de ver os créditos foi mais profunda que a de muitos games que levei semanas, ou até meses para concluir.
Enredo envolvente; protagonista comovente
Saindo um pouco do subjetivo para falar da protagonista e do enredo em si, Edith é filha mais nova de uma família enorme, que vitimada por uma maldição, tem seus membros mortos ou desaparecidos ainda muito jovens. Se vendo sozinha, a menina se põe a explorar a mansão da família em busca de objetos e pertences que vão aos poucos levando o jogador mais atento a montar a personalidade de cada um que já viveu ali. Nesse aspecto em especial, o jogo se assemelha bastante ao premiado Gone Home, porém com uma execução e finalização muito melhor sucedidas em minha opinião.
Outro grande risco ao qual os desenvolvedores se expuseram com êxito foi criar uma família realmente numerosa, sem que nenhum dos integrantes ou suas memórias soassem repetidas ou sem personalidade. Novamente, impressiona a forma como conseguimos delinear suas personalidades, inquietações e anseios, e jamais confundi-lo com outro, ou esquece-lo durante a narrativa. E provavelmente por um bom tempo tempo depois, já que Edith Finch é o tipo de jogo que tem tudo para crescer dentro do jogador com o tempo, sendo revisto e reinterpretado à luz de novas experiências.
Cada uma dessas pessoas tem seu objeto “definitivo” digamos assim. No caso de um fotógrafo, por exemplo, a máquina de trabalho. E é a interação com esse item final que transporta o jogador da casa, e dá inicio ao que no jogo são os flashbacks fantásticos, em cujas situações improváveis como as citadas acima, ficamos cientes do final de cada individuo, ao mesmo tempo em que temos a chance de mergulhar ainda mais em suas peculiaridades.
A partir daqui, há pouco que se pode falar sem estragar a experiência do jogador, pois um dos grandes atrativos da obra está no fator surpresa. Cada flashback é como um jogo totalmente novo, que apesar de curto, se fecha em si mesmo através de mecânicas próprias de gameplay, e formas únicas de interagir com o cenário, e até mesmo de se locomover. Trata-se de uma das ideias mais originais já executadas e, assim como seu predecessor, The Unfinished Swan, quanto menos se souber dele ao mergulhar em seu universo, melhor.
Uma obra de arte construída sobre peculiaridades
Outra peculiaridade, e aqui novamente os fãs de Gabo vão se sentir em casa, é a relação próxima e quase pessoal dos personagens com a morte. Por se tratar de uma família amaldiçoada, desde o nascimento cada um deles desenvolve sua própria visão do não tão futuro desenlace, que em alguns casos se personifica numa figura humanizada – quase amiga – com quem compartilham a vida, enquanto noutros gera fúria, medo e até ressentimento por estar preso nessa saga familiar, a revelia da sua vontade ou senso de pertencimento.
O mais interessante é que, tanto no caso dos que vão “em paz” quanto dos que se vitimizam, a sensação que fica no jogador é intencionalmente a mesma. Ao contrário do que possa parecer por tudo dito até aqui, o tom do jogo não é de tristeza nem perda – pelo contrário, é de transição. A desenvolvedora parece ter desejado mostrar que não importa o papel que desempenhamos aqui, cada um tem seu momento e ele passa. Simples e imutável assim – independente da forma que lidamos com isso.
E claro que ao abrir essa discussão por meio da reação de cada familiar de Edith, a porta para ela é aberta na nossa mente também. A cada episódio, vamos nos colocando no lugar daquele indivíduo, e pensando em como seria nascer com os dias contados.
Teríamos filhos? Construiríamos uma carreira? Ou viveríamos intensamente e de forma imediatista? Seríamos autênticos ao expressar nossa personalidade, ou extremamente cautelosos? Tentaríamos salvar a nós mesmos, ou usaríamos essa energia para lutar por algum ser amado? E sendo parte de uma família numerosa, quais as consequências de cada escolha para aqueles que sobrevivessem a nós?
Vale ressaltar que a forma como o jogo oferece essas reflexões não é banalizadora nem niilista, pelo contrário. Saímos do jogo não pensando no fim, mas sim valorizando o momento, já que a obra utiliza o realismo fantástico acima de tudo, para transmitir um posicionamento de respeito a vida, apresentando-a justamente como a oportunidade dada a cada individuo para manifestar suas características únicas e impossíveis de se repetir em qualquer outro, ainda que por um momento muito breve em alguns casos.
Apesar de se tratar de morte, o tema aqui é como se vive. E isso só é possivel de se compreender realmente jogando. Não se trata de frases feitas ou clichês, mas de uma viagem rica e intrigante pelas alegrias, memórias e conflitos de vários indivíduos que, de alguma forma e apesar da distância, deixaram sua marca viva na própria Edith – e ao final, também em nós jogadores.