Com A Múmia, o Dark Universe tem um início muito promissor
Hoje em dia, é inegável que o principal objetivo dos estúdios hollywoodianos e de muitos cineastas é criar um universo compartilhado em que diferentes filmes e personagens interligam-se. A Marvel Studios, responsável por essa tendência contemporânea, fez isso com os seus super heróis, a Warner/DC está correndo atrás do tempo perdido e até mesmo M. Night Shyamalan, com o longa Fragmentado, revelou que as suas obras fazem parte de um único mundo criativo. A Universal, não querendo ficar para trás, decidiu realizar um reboot dos seus famosos filmes de monstro. O longa que dá o pontapé inicial a esse projeto é o ótimo A Múmia (The Mummy).
Escrito pelos talentosos David Koepp e Christopher McQuarrie (Dylan Kussman também participou), o roteiro acompanha as aventuras do protagonista Nick Morton (Tom Cruise, cujo último filme foi o fraco Jack Reacher: Sem Retorno). Procurando por tesouros no deserto mesopotâmico, ele acaba por encontrar o sarcófago da antiga princesa Ahmanet (Sofia Boutella), uma mulher cuja sede por poder fez com que os egípcios a mumificassem séculos atras. Agora, após despertá-la de seu longo sono, ele terá de fazer de tudo para impedir que os frustrados planos iniciais da princesa se concretizem.
Nesta nova adaptação, a maior responsabilidade que recaía sobre os ombros dos responsáveis consistia na árdua tarefa de realizar um blockbuster de altas proporções sem que os elementos B típicos do filme original fossem perdidos. É válido lembrar que as diferentes versões da Múmia nunca foram filmes de terror ou suspense. Enquanto o longa de 1932 era um drama, as obras posteriores, incluindo esta última adaptação, sempre apostaram muito mais numa atmosfera de aventura e/ou comédia. Sendo assim, não faz sentido dizer que a nova obra do diretor Alex Kurtzman não é aterrorizante o suficiente.
Claramente, não é essa a intenção. Aliás, de certa maneira, o diretor fez do seu segundo longa metragem uma espécie de evento inédito na história do Cinema: um filme B realizado com orçamento milionário. Isso não significa que os efeitos ou a aparência do filme são quase amadores. Na verdade, está longe disso. O que desejo afirmar é que aquela impressão comum que se tem, de que os realizadores de uma produção B estão se divertindo muito com a experiência, se repete aqui. As intermináveis piadas e gags, que chegam até mesmo a flertar com o humores camp e britânico (as aparições do personagem Vail trazem à mente Todo Mundo Quase Morto, de Edgar Wright), são um claro reflexo disso. Tudo parece ridículo, mas na medida certa. Há no filme aquele ridículo que atrai e diverte à beça.
No entanto, isso não quer dizer que o filme também não se leve a sério. Afinal de contas, além de acertar em cheio na composição de situações e diálogos deliciosamente irônicos, o roteiro não deixa de trabalhar o seu protagonista de uma maneira complexa. Assim como todos nós, Nick Morton é um sujeito capaz tanto de atos heroicos quanto mesquinhos. Isso faz com que haja dentro dele uma divisão inconciliável, pois, como estamos acompanhando uma narrativa cinematográfica, para que o personagem atinja a ponta final do seu arco dramático, é preciso que um lado impere sobre o outro. E é isso que a história propõe, mas, felizmente, não através de diálogos expositivos ou cenas maniqueístas.
O grande mérito dramático do filme reside na inspirada ideia de transformar as duas personagens femininas em representações físicas dos dois lados existentes no interior de Nick. A briga de ambas pelo protagonista é um reflexo exterior da batalha que acontece dentro dele. Jenny Halsey (Annabelle Wallis), com os seus cabelos loiros, olhos claros e personalidade gentil, simboliza o que existe de bom em Nick; já Ahmanet, com os seus cabelos e olhos negros e desejos homicidas, o lado ruim (percebam como as duas estão ligadas pela similaridade dos brincos que usam). Sob essa chave interpretativa, a própria inclusão do Dr. Henry Jekyll (Russell Crowe) não soa arbitrária, uma vez que ele também possui dentro de si essa ambiguidade comportamental.
Mas se engana quem acha que Jenny e Ahmanet existem somente como representações exteriores do caráter dúbio de Nick. Embora modestamente, elas também possuem personalidades ambíguas. Ao passo que a primeira esconde mais segredos do que as suas bondosas ações aparentam, a segunda, por trás do visual e gestos diabólicos, oferece vislumbres de suas vulnerabilidades emocionais. No fim, em essência, depois da fotografia, que trabalha com cores vivas e escuras, o elemento-mor que resume perfeitamente essa duplicidade, característica marcante dos quatro personagens principais, são os olhos que se duplicam sob a influência de espíritos malignos.
Um outro simbolismo rico trabalhado pelo filme pode ser visto na relação que é construída entre o Egito e as Cruzadas da Igreja Católica. Como a Múmia é um demônio e a trama foi transportada para a Inglaterra, era necessário fazer uma ligação entre a história da personagem e o Ocidente cristão. Muito inteligentemente, os roteiristas solucionaram esse problema relacionando a malignidade da vilã com os horrores cometidos pelos guerreiros católicos. Não é à toa que uma cena se desenrola em um igreja abandonada e a pedra que dá imensos poderes a Ahmanet é uma espécie de Sagrado Coração às avessas (além de ser vermelha, veja como o guerreiro a segura próximo do peito).
A direção de Alex Kurtzman
Em relação aos aspectos técnicos, o filme não está livre de falhas. A montagem de Andrew Mondshein e Gina e Paul Hirsch (sic) é muita repetitiva (nos flashbacks e visões, há planos que aparecem mais de duas vezes!) e limitativa (boa parte das cenas de ação não atingem todo o seu potencial pelos cortes indevidos do trio); a trilha sonora de Brian Tyler é muito parecida com o trabalho de outros compositores contemporâneos (ele perdeu uma ótima oportunidade de usar a música para brincar com as diferentes atmosferas do filme); e, em alguns momentos, os efeitos especiais deixam claro para o espectador a sua natureza digital.
Já a direção de Alex Kurtzman, por sua vez, se mostra surpreendentemente competente. Ele não só mostra ter timing cômico e habilidade para percorrer diferentes gêneros e tons, como também revele estar sintonizado com as exigências feitas atualmente pelo grande público. A opção de ter transformado os “soldados” de Ahmanet em zumbis vai ao encontro daquilo que o espectador atual está acostumado, como The Walking Dead e Guerra Mundial Z. Além disso, o conhecimento da iconografia imagética dos filmes de monstros da década de 1930 e 1940 aparece em todo o seu esplendor no maravilhoso plano que mostra a Múmia na parte de baixo do quadro e uma assustadora abadia na parte de cima.
Com atuações carismáticas e comicamente impecáveis do talentoso elenco, A Múmia é a prova definitiva de que a Universal acertou ao revitalizar os seus filmes de monstros. O temor era de que, na contemporaneidade, o estúdio não fosse capaz de compreender as idiossincrasias de cada personagem, relegando todos a uma vala comum. Mas, depois deste primeiro lançamento, ficou evidente que eles estão dispostos a fazer o que é necessário para dar a cada um deles a abordagem e o filme que merecem. E, no fim de tudo isso, quem sai ganhando é sempre o espectador.
(Confira nosso especial de A Múmia, com uma análise de três versões da criatura, um ranking dos Monstros da Universal e um artigo sobre o contexto e as influências do período)