Terrence Malick se repete no longa De Canção Em Canção
Faye (Rooney Mara, de Una), uma jovem guitarrista tentando fazer sucesso no ambiente musical da cidade de Austin, no Texas, é o centro de um triângulo amoroso formado por um compositor em ascensão (Ryan Gosling, do premiado La La Land – Cantando Estações) e o produtor hedonista interpretado por Michael Fassbender (recém-advindo dos péssimos Assassin’s Creed e Alien: Covenant). Este último, por sua vez, mantém um relacionamento paralelo com uma garçonete (Natalie Portman, de Além da Ilusão). É a partir desses desencontros amorosos que os personagens do longa De Canção Em Canção (Song To Song) passam a questionar as próprias escolhas.
Assistir aos últimos quatro filmes de ficção de Terrence Malick (A Árvore da Vida, Amor Pleno, Coração de Copas e o atual) pode gerar uma reflexão profícua sobre as diferenças que separam o estilo de um autor de repetições de signos e conceitos. É sabido que autoria se estabelece a partir de um grupo de características presentes em duas ou mais obras de um determinado artista. Porém, para essas características não serem compreendidas como mero uso reiterado dos mesmos e velhos elementos, elas precisam ser renovadas e adaptadas de acordo com as particularidades de cada obra. Senão, o que se tem é um reaproveitamento cafajeste de projetos anteriores.
No caso de Malick, estou plenamente convencido que estamos diante da segunda opção. Assistindo às escolhas feitas por ele em De Canção Em Canção, não consegui afastar a sensação de estar revendo imagens e ouvindo falas dos três longas anteriores. Sim, a narração sussurrada em off, as distorções oriundas das lentes grande-angulares, os cortes frenéticos e os temas espirituais são características constituidoras do estilo adotado pelo diretor em Além da Linha Vermelha e aprofundado a partir de A Árvore da Vida. Já alguns planos, como aqueles em que vemos o sol ao fundo, os atores caminhando na areia e uma borboleta voando, ou os tilts em galhos de árvore e no céu, além de certas frases, do tipo “Quem sou eu?”, já foram vistos e ouvidos nos outros filmes inúmeras vezes.
Aos que não entenderam o meu argumento, peço que pensem em Stanley Kubrick. Claramente, ele é um diretor que possui um estilo único, inimitável. Vários aspectos da sua obra podem ser planamente reconhecidos pelo espectador capacitado e atento. No entanto, em nenhum momento tem-se a impressão de que ele está repetindo planos, símbolos ou falas. O mesmo não acontece com Malick. O sentimento de que quase tudo é reciclado vem sendo muito forte durante as sessões de seus filmes mais recentes. Aliás, não duvido nada que, no processo de montagem, ele tenha empregado coisas que foram descartadas dos projetos anteriores.
Um dos melhores roteiros de Malick
E é uma infelicidade que a recepção ao invólucro do filme tenha se dado dessa maneira, pois o roteiro do longa é um dos melhores do diretor. Além de evitar abstrações e divisões desequilibradas de perspectivas (como acontecia em Amor Pleno), Malick dedica tempo suficiente para que os três personagens que compõem o triângulo amoroso principal possam aparecer e expor verbalmente toda sua fragmentação interna. Cada um deles possui particularidades definidoras, porém, também apresentam comportamentos que podem parecer contraditórios, mas que, numa avaliação mais cuidadosa, sugerem complexidade interior.
Isso fica evidente na construção de Faye. Em certo momento da história, é dito que ela tem uma parte do rosto banhada pela luz e outra imersa na escuridão. Essa dualidade é representada pela relação que mantém com os personagens interpretados por Gosling e Fassbender. Enquanto o primeiro personifica a alta espiritualidade que ela deseja atingir (a cena em que canta canções gospeis é um claro sinal disso), o segundo encarna a sua ânsia pela liberdade individual e o acúmulo de experiências mundanas. Em termos metafóricos, um é Deus e o outro, o diabo. Estar indecisa entre os dois é a mesma coisa que estar indecisa sobre o que deseja para a sua vida. O cenário dessa batalha interna é a Sodoma e Gomorra dos festivais musicais, um lugar onde a perdição está sempre a um passo de distância.
No entanto, essa complexidade não pertence somente a Faye. Apesar de representar um nível elevado de padrão comportamental, o personagem de Gosling também se deixa levar, mesmo que por um breve momento, pelas delícias ilusórias típicas do universo em que acabou de adentrar, e o personagem de Fassbender mostra vislumbres de sua vulnerabilidade emocional, embora, no frigir dos ovos, a única coisa com que ele se importa é em ser uma espécie de deus no seu reinado de devassidão. Essa bifurcação moral dos personagens é simbolizada até mesmo no título original, que faz referência ao Cântico de Salomão bíblico, no qual o ato sexual é visto como válido somente quando realizado por duas pessoas que se amam.
Assim, com personagens tão bem trabalhados, é lamentável que o estilo cansativo, entediante e, principalmente, repetitivo de Malick sabote tanto o filme. Caso estivesse na cadeira de diretor de De Canção Em Canção o homem responsável por Cinzas do Paraíso e não o sujeito por detrás dos longas mais recentes, poderíamos ter tido um grande filme. Do jeito que está, o resultado é imensamente irregular. Uma notícia recente diz que, no seu próximo projeto, Malick retornará a uma narrativa mais linear e menos fragmentada. Torçamos que para que isso se concretize.