Nos Estados Unidos, Donald Trump e sua retórica fascista neoliberal deixaram de ser uma piada para se tornar uma ameaça real e imediata. Na Europa, a crise da imigração atinge níveis sem precedentes após a Segunda Guerra. No Brasil, asnos como Jair Bolsonaro ganham mais e mais atenção conforme os conflitos de classe, trajados de “combate à corrupção”, ganham destaque nos noticiários. A globalização pós-Guerra Fria trouxe consigo uma sociedade que valoriza a identidade multicultural, mas esse mesmo conceito, que nasceu no cerne da brutalidade capitalista, não gosta e se debate para aceitar um mundo multifacetado.
Pois bem. O amigo leitor deve estar se perguntando agora: onde está a crítica de Zootopia: Essa Cidade é o Bicho? Por incrível que pareça, você está no lugar certo!
Nesses tempos em que o politicamente correto domina a cultura pop, até que demorou para alguma animação tratar especificamente dos desafios de um mundo onde suas principais capitais são multiculturais. Embora isso não seja algo necessariamente bom, ou garanta uma boa história, é até interessante que um desenho da Disney, que tem todo o cuidado de apresentar esse tema da forma mais divertida e delicada possível, seja o emissário desse debate, evitando que fontes menos sensíveis e pedagógicas atinjam as crianças, reforçando ciclos de intolerância e preconceitos. Nesse aspecto, ponto para o estúdio na coragem de apostar nesse tema.
Na trama, temos a coelha Judy Hopps, que desde de a infância alimenta um sonho: ser uma agente da lei em Zootopia, a capital multiespecista desse mundo. Ao atingir seus objetivos, Judy é designada para investigar um desaparecimento. Enquanto se debate para se ajustar às dificuldades e aos preconceitos que sofre por ser a única policial coelha da cidade, Judy e seu parceiro Nick, a raposa, correm contra o tempo para resolver esse caso, que ameaça não só a família do desaparecido, mas a própria estrutura social que sustenta a cidade.
A função primária do filme é ser cômico, com algum êxito neste objetivo. Algumas das situações pelas quais Judy e Nick passam são bastante engraçadas – a cena das preguiças é absurdamente hilária – e a dinâmica entre os dois, que tem um relacionamento bem desenvolvido durante a projeção, dá a consistência necessária para a animação se sustentar enquanto trabalha paralelamente outros temas, evitando ainda cair no lugar comum de um romance entre ambos, como seria de se esperar da Disney. Nota-se um esforço por parte do estúdio nas animações recentes, fugindo do estigma das suas princesas clássicas.
Então, nós temos as questões sociopolíticas. Embora a mensagem seja fácil de ser captada pelas crianças, já que ela é obviamente uma crítica contra preconceitos e estereótipos, para um público mais velho, os temas apresentados são um buraco que está mais embaixo. Dadas as contínuas demonstrações de ódio e violência social que temos visto por parte de muitos adultos, supostamente esclarecidos, em nosso país e no mundo, talvez assistir a Zootopia seja uma oportunidade de aprender o óbvio junto com as crianças.
O filme transfere as complicadas relações de políticas de identidade multicultural em um mundo que representa as formas mais básicas de fragmentação social humana – raças, etnias e distinções de gênero – para uma forma mais elementar e reconhecível do mundo natural: a polarização “predador contra presa”, o “pequeno contra o grande”. No mundo de Zootopia, leões e gazelas vivem lado a lado, e elefantes transitam nos mesmos espaços que camundongos, e todos vivem em paz. Supostamente. Pois a paz aqui é permeada por uma tensão perene, escondendo cicatrizes, literal e figurativamente, oriundas de uma longa história de conflitos entre esses lados opositores. Claro que o amigo leitor está se questionando se uma animação infantil pode, de fato, se comportar como um breve tratado de sociologia da forma como estamos descrevendo. Novamente, depende de quem o está assistindo e do quanto está disposto a perceber aspectos de comportamento e pensamento de si mesmo na tela. Bem, talvez o maior argumento do desenho seja o seguinte: não importa o quanto você queira escapar dessa conversa. Se você vive nesse mundo, uma hora terá que lidar com isso.
No fim, o fato é que Zootopia é uma sociedade que, assim como a nossa, basicamente funciona. No entanto, somente porque está fundamentada em uma frágil base de segregação seletiva e desigualdade social. Algumas dessas questões são práticas, já que camelos não sobrevivem no ártico, como ursos polares não sobrevivem no deserto. Para isso, cada um tem o seu próprio bioma dentro da cidade, garantindo a acessibilidade a todos. Em tese, pois no centro de Zootopia, uma espécie de “bioma genérico” travestido de cidade cosmopolita, a segregação rola a olhos plenos – o engodo do sorvete de Nick no primeiro ato da animação mostra a realidade nua e crua de Zootopia. Trata-se de uma espécie de apartheid animal, não reduzido a duas raças, mas expandido a várias espécies, onde tamanho, força física e um tipo de “nobreza especista” determinam a maneira como você vai ser tratado, mas também seu lugar e hierarquia política: espera-se que as ovelhas sejam obedientes, espera-se que um leão seja o prefeito. Ninguém espera que uma coelha seja policial, por exemplo, e a conversa começa por aí. O filme deixa claro que as “presas” superam os “predadores” em um número de dez para um. Mesmo assim, um predador é prefeito, somente colossais mamíferos são agentes da lei e a vice-prefeita ovelha precisa criar um “programa de inclusão de mamíferos” – pelo qual Hopps pode se tornar policial e motivo pela qual ela sofre tanto preconceito. Sutil, ma non troppo, certo? Algum desavisado pode perguntar quando Foucault começou a escrever roteiros para a Disney.
A personagem de Judy acaba servindo como veículo para uma série de minorias das sociedades contemporâneas se identificarem. Ela trabalha o dobro e sofre o dobro de todos os outros personagens para atingir os mesmos objetivos. Mas também vemos o outro lado dessa mesma moeda em Nick. Por ser uma raposa, também sofreu com o especismo e de tanto lhe dizerem que ele deveria ser um trapaceiro,ele acabou por abraçar o seu “destino manifesto”. O relacionamento de ambos acaba servindo para revelar em si mesmos as qualidades e falhas de suas próprias personalidades e histórias, interligando seus desafios pessoais àqueles estabelecidos pela sociedade que vivem. Talvez Foucault tenha chamado Bauman para dar uma força no texto.
Mas é claro que essa densidade temática cobra seu preço, pois em se tratando de um filme da Disney, não podemos esperar um final lúgubre. Então, para desatar esse nó sociopolítico que eles mesmos criaram no filme, os autores, uma legião de diretores e roteiristas, acaba optando pelas saídas fáceis e óbvias que se espera e tudo termina bem quando acaba bem, principalmente se o final for acompanhado de uma edificante, explícita e desnecessária moral. Sem falar do show de uma gazela dublada por Shakira. Essa opção não chega a prejudicar a animação (em relação ao final, já Shakira…), mas dar desenvolvimento corajosamente a temas amargos como esses para concluir com um final adocicado pode fazer os espectadores um pouco mais críticos torcerem o nariz. Por outro lado, trabalhar – de forma pouco sutil – todos esses temas delicados pode desagradar o bom e velho espectador comum, atrás da sua boa e velha diversão alienada de fim de semana.
Mas com certeza vai agradar as crianças, já que o filme é para elas, e no final das contas, apesar de tematicamente denso, o filme é tranquilo e o humor é leve. Devemos ser gratos por isso, pois o fato de nenhum pequeno cervo ter sua mãe brutalmente assassinada já é um alívio, não é Disney?