O difícil contexto retratado em Zama
Zama (idem) é um filme de dissonâncias, tanto revisionistas quanto cinematográficas. Hoje em dia, quando os discursos de representatividade e igualdade de raça e gênero dominam as perspectivas atuais e históricas, Lucrecia Martel decidiu retornar ao período colonial da América espanhola, um dos momentos mais violentos, escravocratas e patriarcais da História, para mostrar que não só os afro-americanos e as mulheres foram vítimas da brutalidade física, psicológica e emocional da época, mas homens brancos também. Muitos destes eram obrigados a colocar as próprias opiniões, desejos e visões sob o jugo da maioria desumana que estava no poder.
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A maneira encontrada por Martel para expressar essa violência presente no passado do nosso continente é paradoxal e, por isso mesmo, fascinante. Em vez de recorrer ao choque e o sadismo característicos desse tipo de filme (ressaltar a violência dos períodos de escravidão já se tornou um cliché), ela faz algo diferente e melhor: estabelece uma atmosfera fria e passiva, na qual a crueldade não é impactante, mas apenas um elemento do cotidiano. Quando o protagonista, em um dos seus poucos momentos de maldade, estapeia uma mulher, a ação não é plenamente captada pela câmera; e no instante em que um cavalo é morto, nós só testemunhamos os segundos finais do animal.
Essa rigidez climática e técnica (o ritmo compassado e os planos estáticos são essenciais para que tal impressão seja gerada) criam o cenário perfeito para que a diretora realize as suas cenas de disrupção, aqueles segundos ou minutos nos quais acontecimentos estranhos desafiam a ordem e simbolizam, por vezes, o caráter benevolente de Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho). Seja através da trilha sonora (que flerta com um certo anacronismo), seja através de planos brilhantes (como a quebra da quarta parede pelo olhar de um cavalo), Martel nos mostra que, mesmo na normatividade violenta imposta pelos cruéis, o bem e o desenrolar natural da vida encontram frestas para espalhar o seu brilho.
Ousadia artística, frieza narrativa
No entanto, é inegável que, pelo outro lado, essas escolhas, tão impactantes do ponto de vista intelectual, acabam por produzir uma experiência sensorial fria. As ações demarcadas, a precisão da câmera, o controle do caos e do casual contribuem para um filme rígido demais, com o qual é difícil simpatizar ou reagir emocionalmente. Além disso, a conexão simbólica entre o protagonista e o peixe recusado pelo mar é muito óbvia e, na transição do segundo para o terceiro ato, a busca feita de Zama e outros personagens por Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele) soa imposta pelo roteiro, como se a estrutura natural tivesse sido interrompida para servir a um propósito narrativo. Possivelmente, por uma necessidade de se manter fiel ao texto original de Antonio Di Benedetto.
Dessa maneira, Lucrecia Martel produziu um filme intelectualmente rico, mas cujo impacto sensorial é quase nulo. Pensando sobre ele posteriormente, a recompensa pode ser grande. Como experiência cinematográfica, por sua vez, pode ser muito frustrante. Porém, é impossível não parabenizá-la pela coragem de abordar um assunto espinhoso e tantas vezes retratado no cinema de uma forma adulta e original. Não é todo dia que nos deparamos com esse tipo de ousadia artística.
Crítica publicada originalmente no Bastidores!