Z: A Cidade Perdida é mais um acerto de James Gray
Assim como muitos diretores do século passado (Howard Hawks, Billy Wilder, John Ford, Nicholas Ray, Samuel Fuller e tantos outros), James Gray é um cineasta capaz de trabalhar com as convenções dos gêneros cinematográficos e, ainda assim, imprimir marcas autorais. Nos longas Fuga Para Odessa e Os Donos da Noite, ele fez isso com os filmes de Máfia. Em Amantes e Era Uma Vez em Nova York, com as histórias de romance e de época, respectivamente. Já em Z: A Cidade Perdida (The Lost City Of Z), ele realiza a mesma coisa, desta vez, com os filmes de aventura típicos das décadas de 1940 e 1950.
Baseado na história real de Percy Fawcett e adaptado do livro homônimo de David Grann pelo próprio diretor, o roteiro do longa se concentra na história do famoso explorador (interpretado com brilhantismo por Charlie Hunnam, diferente do que vimos em Rei Arthur: A Lenda da Espada) e em sua obsessão por uma cidade perdida no meio da floresta Amazônica, nomeada por ele de “Z”. Sacrificando uma vida mais pacífica ao lado da esposa (Sienna Miller, de Sniper Americano) e dos três filhos (estes são interpretados por diferentes atores em diferentes momentos da vida) para encontrar a sua El Dorado, ele realizou uma série de viagens ao misterioso local até que, na última delas, que tinha sido feita juntamente com o seu primogênito (Tom Holland, o novo Homem-Aranha), os dois desapareceram e nunca mais foram encontrados.
Em Z: A Cidade Perdida, há tudo aquilo que é comumente visto em filmes de aventura: um protagonista destemido, jornadas perigosas, mistérios a serem descobertos, paisagens deslumbrantes , além, é claro, de muitos barcos, chapéus e florestas. Porém, seria um erro ir assistir ao filme esperando uma obra no estilo de Bandeirantes do Norte, Vendaval de Paixões ou Indiana Jones. Embora esteja repleto de elementos visuais que são rotineiramente associados ao gênero, o longa se parece muito mais com as experiências feitas por Werner Herzog em Aguirre, A Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo do que com produções hollywoodianas (aliás, há várias semelhanças entre o longa de Gray e estes dois de Herzog, como as cenas que se passam em jangadas e outra que acontece numa ópera localizada no meio da floresta).
Desde o começo do filme, é evidente que não estamos acompanhado uma história comandada por um estúdio ou um sujeito sem muita personalidade artística, mas sim por um diretor autoral, dono de uma visão única do Mundo e de Cinema. No longa, a trama não se desenrola em um ritmo frenético, os personagens não são construídos superficialmente e a história não é usada como trampolim para efeitos especiais e sequências de ação anestesiantes. Ao contrário do que era esperado, a montagem estabelece uma narrativa compassada, o protagonista e aqueles que o rodeiam são seres complexos e cheios de contradição e a história revela ter muitas camadas interpretativas.
Uma passagem que serve como exemplo perfeito dessa diferença entre uma obra genérica e outra dirigida por alguém com voz própria é a cena em que vemos Percy e o seu assistente Henry Costin (Robert Pattinson, que já mostrou serviço em The Rover) indo de trem até o local em que descerão para começarem a trabalhar. Na transição desse momento para as primeiras andanças dos dois personagens pelas paisagens estonteantes, um sujeito com uma visão mais ordinária se valeria de inúmeras tomadas de helicóptero e uma trilha grandiosa. Grey, por sua vez, usa como fio condutor entre esses dois momentos distintos a narração diegética (feita pelo protagonista) e, depois, em off (que é realizada por Nina, a sua esposa), do poema “O Explorador” de Rudyard Kipling. Ou seja, em vez de espetacularizar a cena, trazendo-a para fora, ele faz o movimento inverso, puxando-a para dentro e a tornando muito mais intimista.
Esse tipo de sutileza, muito rara em blockbusters de aventura, também se mostra presente em outros momentos. Seja através de rimas visuais concebidas pela montagem, como a que substitui o movimento de um líquido pelo percurso de um trem, ou a que alterna a subjetiva do protagonista, que está olhando para pessoas na plataforma de uma estação, por imagens de sua esposa (repetindo o mesmo movimento de câmera nas duas cenas); seja através de momentos repletos de significados, como o plano que mostra Nina refletida num espelho enquanto se perde no meio de uma floresta imaginária (isto é, as escolhas do marido acabaram por refletir em sua vida, isolando-a nos mistérios insolúveis da obsessão que o motivava); o filme guarda ao espectador mais atento pérolas que vão sendo descobertas aos poucos.
A fotografia e o protagonista de Z: A Cidade Perdida
Uma dessas pérolas decorre da possibilidade de que James Gray e o magistral Darius Khondji, o diretor de fotografia, conceberam o visual do filme tendo como base a estética do Impressionismo e de alguns quadros feitos no Brasil por pintores franceses e holandeses. É muito difícil não enxergar na intensidade com que as cores naturais são filmadas (exteriorizando o afã interno do protagonista) e na explosão do amarelo que cobre os céus (como se fosse uma mancha de Sol) uma influência clara do movimento artístico criado na França no século XIX e da obra de artistas como Jean Baptiste Debret e Frans Post.
Finalmente, como nada disso funcionaria se os personagens não fossem capazes de atrair a atenção do espectador, Gray, que também é um exímio roteirista, sabe que o publico consegue se conectar emocionalmente apenas quando aquilo que está acompanhando tem a mesma complexidade que qualquer situação humana real. Por isso, os dois personagens principais, Percy e Nina, esbanjam profundidade psicológica.
Enquanto o primeiro, ao mesmo tempo que é movido pela febre de resgatar o nome dos seus ancestrais e entrar para a história como o descobridor de uma civilização perdida (o discurso final da esposa sobre como a mera busca pelo inatingível já justifica uma existência é devastador), não deixa também de se importar genuinamente com a reputação dos indígenas (parte do seu desejo em encontrar Z é oriundo da intenção de provar que os índios não são selvagens e sim seres humanos capazes de ações complexas), a segunda aceita de bom grado o papel de esposa, mãe e dona de casa, porém nunca deixando de questionar incisivamente as noções comportamentais da sociedade da época.
Com toda essa dedicação na hora de compor cada um dos elementos que constroem um filme, não é de se estranhar que Z: A Cidade Perdida seja uma obra de arte estarrecedora. Sim, é um filme de aventura, mas achar que é somente isso seria um equívoco imperdoável. Em sua essência, o sexto longa metragem de James Gray é um conto melancólico e reflexivo sobre a infinita busca do Homem pelo irrespondível. Para uns, essa busca é por Deus, já outros procuram descobrir o que acontece no pós-vida. Para Percy, se restringia à descoberta de uma civilização perdida para sempre entre os mistérios de uma obscura e inatingível floresta.