O melodrama realista de Uma Mulher Fantástica
No exato momento em que se tornou um conceito artístico, o realismo trouxe um problema de natureza representativa para as artes. Nos casos da literatura, do teatro e do cinema, se antes a dramatização exagerada dos acontecimentos dava aos autores a oportunidade de criarem personagens completamente bons ou ruins, quando a estética se aproximou muito da realidade, surgiu a noção de que as personas fictícias deveriam ser mais parecidas com a experiência humana, uma vez que esta é caracterizada por uma zona moral cinzenta, na qual a maioria de nós se encontra. Se uma história envolve racismo ou preconceito, então, esse cuidado deve ser ainda maior, já que a tentação de retratar o intolerante de uma maneira maniqueísta é grande. Em Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica), Sebastián Lelio mostra ter uma compreensão profunda disso.
Trabalhando como garçonete de dia e cantando em um clube à noite, Marina Vidal (Daniela Vega) está apaixonada por seu namorado, Orlando (Francisco Reyes), um homem que compensa a diferença de idade entre os dois sendo carinhoso e compreensivo. No entanto, depois de uma noite em que expressam os seus sentimentos e desejos intensamente, ela precisa levá-lo a um hospital por causa de aneurisma cerebral. Chegando lá, ele é declarado morto. Desse momento em diante, ela precisará enfrentar a dor do luto e a fúria dos familiares, que têm dificuldade em aceitar a sua transsexualidade.
É verdade que, visual e sonoramente, Uma Mulher Fantástica remete aos melodramas latinos e espanhóis, em um estilo similar ao de Pedro Almodóvar, do recente Julieta. A paleta de cores adotada pela direção de arte e Benjamín Echazarreta, o diretor de fotografia, é usada para criar ambientes quentes, que flertam com a saturação, mas que também são atenuados pela existência de sombras (uma forma de simbolizar a dualidade de sentimentos que habitam a protagonista), a trilha sonora de Matthew Herbert traz à mente os acordes de Bernard Herrmann pelo viés da emulação tantas vezes feitas por Alberto Iglesias em filmes como Fale Com Ela e Tudo Sobre Minha Mãe e as duas sequências de sonho tentam evocar o tom surrealista típico desse tipo de obra.
Ao fazer essas escolhas, parece que Sebastián Lelio desejou amenizar o possível caráter de denúncia do seu longa, como se a opção pelo melodrama tirasse um pouco do peso que a história e as imagens pudessem exercer no espectador. Por outro lado, talvez esse realmente seja o estilo do diretor, que, por estar apenas no seu segundo longa-metragem, ainda tenta encontrar uma estética que represente fielmente a sua visão de mundo. Seja qual for o motivo, isso não muda o fato de que Uma Mulher Fantástica revela-se ciente das convenções do gênero do qual faz parte e, mais importante do que isso, transmite a sua mensagem, sem que esta seja martelada na cabeça do público ou seja emitida com o ar de superioridade daquele que acha ter algo a dizer aos outros.
Sobre este último aspecto, ele nem chega a acontecer por causa da estética carregada em cores e tons exagerados, mas porque o roteiro de Lelio e Gonzalo Maza cria uma situação de mistério que coloca os “intolerantes” em uma posição complicada, portanto, compreensível. Quando estão saindo para ir ao hospital, Orlando cai da escada e fica com hematomas pelo corpo. Assim, logo que a morte é declarada, inicia-se uma investigação sobre o motivo do falecimento, o que justifica o comportamento receoso por parte dos familiares. Além disso, há outros personagens que convivem com a protagonista e nem sequer comentam sobre a sua orientação sexual, aceitando normalmente a opção feita por ela.
No entanto, o preconceito existe e Lelio sabe disso, porém, acerta ao retratá-lo como uma reação instintiva ao que pode ser considerado “diferente” e não uma construção racional, de ódio controlado e direcionado. Sim, há duas cenas no momento de transição do segundo para o terceiro ato, quando a história precisa crescer para a chegada do clímax, em que os personagens são ruins apenas porque desejam ser ruins e que o filme se desvia do caminho trilhado até então (as supracitadas sequências de sonho também criam uma sensação de estranheza, como se estivessem deslocadas do restante), mas, na maior parte do tempo, o diretor busca compreender o que leva os personagens a agir de uma determinada maneira.
A força interior nos leva à liberdade
Essa maturidade na hora de olhar para o mundo não só é uma característica comum aos artistas genuínos, como também é essencial para evitar discursos niilistas ou de puro vitimismo (este último é que acontece em Moonlight – Sob a Luz do Olhar, por exemplo). Uma das características definidoras da natureza humana é a capacidade de fazer escolhas, e Marina sempre opta por ser uma vencedora. Ao mesmo tempo que sabe quem é, compreende quando o próximo não reage naturalmente à sua presença. Mas, se alguém se comporta violentamente, faz o que é necessário para que se pague pelos seus erros. Em outro momento, mostra ser capaz até de usar o corpo masculino para obter algo que necessita (em uma cena brilhante). Isso faz dela uma personagem extremamente cativante. Simbolizada pelo talento que tem para o canto lírico, a sua beleza interior é a força motriz de uma independência completa do meio circundante. E as cenas em que conversa com o seu professor e canta em um recital de piano são emocionalmente devastadoras.
Deste modo, Lelío não usa Uma Mulher Fantástica para fazer proselitismo ou nos mostrar como o mundo é ruim e intolerante com os transsexuais. Pelo contrário. Busca explorar as pequenas tensões existentes entre as pessoas, ilustrar o preconceito como uma reação instintiva ao diferente e fazer da sua protagonista uma figura motivacional para todos nós, pois se lutamos diariamente contra as situações externas, nunca devemos parar de buscar internamente o poder e a beleza de uma personalidade independente. Afinal de contas, essa é a essência da liberdade.