Qualquer pessoa adulta já passou por algumas das vicissitudes que essa fase da nossa existência nos impõe – chefes desagradáveis, relacionamentos intermitentes, equipamentos que nos deixam na mão na hora em que nós mais precisamos… e por aí vai. E qualquer pessoa adulta já passou por aqueles dias maravilhosos em que parece que o universo faz um esforço hercúleo para te tirar do sério, trazendo todas essas pequenas mazelas – que normalmente são ignoradas – todas juntas de uma vez. Só para dar risada da nossa cara enquanto nós queremos arrancar nossos cabelos.
Mas é aquela velha história – se você acha que seus problemas são ruins, acredite amigo leitor, sempre tem um pobre infeliz cujos problemas são piores. Imagine todas essas pequenas chatices aí em cima. Agora imagine que o pobre infeliz em questão não trabalha em um escritório como você, mas sim como agente humanitário em plena Guerra da Iugoslávia, na década de 90. Seus problemas estão prestes a parecer um passeio no parque perto do que Mambrú e sua equipe vão ter que lidar.
A premissa da comédia Um Dia Perfeito (A Perfect Day), filme escrito e dirigido por Fernando León de Aranoa, não poderia ser mais simples – Mambrú (Benicio del Toro) e sua equipe precisam tirar um corpo humano jogado dentro de um poço de lá. É isso. Fácil, não é? Claro que não! O que era para ser uma missão rotineira, que não deveria levar mais que algumas horas, se torna uma hilária epopeia, pois a única corda que a equipe possui arrebenta logo que eles tentam tirar o corpo dali. Então, Mambrú divide sua equipe, composta pelo insano B (Tim Robbins), a novata perfeccionista Sophie (Melanie Thierry) e o intérprete Damir (Fedja Stukan), para ir atrás de uma corda nova. Mas arranjar uma corda na Iugoslávia em pleno processo de separação, no início dos anos 90, não é tão simples quanto se imagina.
A mesma má vontade e as personalidades irritantes que às vezes nós encontramos em nossos colegas de trabalho em um dia ruim no escritório é aplicada aos personagens de Um Dia Perfeito. Mas, obviamente, tudo é imensamente piorado pela tensão constante da Guerra que se sente no decorrer da história. Esse é um ponto interessante do filme. Toda a premissa da narrativa gira em torno do fato de todos estarem em uma zona de guerra, mas a guerra em si não é vista em nenhum momento. Nenhuma explosão, nenhum tiro, nenhuma morte. Não é porque se trata de uma comédia, mas sim pelo fato de que, justamente, a tensão do conflito é usada para extrapolar o humor das situações absurdas encontradas pelos personagens no meio do caminho, que, caso contrário, transformariam o filme em um drama de guerra.
Tudo no filme é explorado pelo ponto de vista do ridículo e do absurdo. O cinismo dos personagens torna o corpo de uma pessoa assassinada brutalmente e jogada num poço para apodrecer e envenenar pessoas é um caso normal de trabalho do cotidiano. A corda quebrada seria o equivalente a uma impressora toda ferrada na repartição pública. E aí está o ponto da analogia – arranjar uma corda nova em uma zona de guerra não é simplesmente entrar em uma loja e comprar. Muito menos quando a ONU está “cuidando” da situação.
Aí está um aspecto curioso do filme – para todos os efeitos, a grande vilã do filme é a própria ONU. Impondo um rigoroso processo burocrático para que a equipe de Mambrú possa agir, ela torna ainda mais insuportável uma situação que já não era simples. E como tudo que é ruim pode ficar pior, a representante da ONU que acompanha a equipe é ninguém menos do que uma ex-namorada de Mambrú, Katya, interpretada pela bela Olga Kurylenko. A primeira comparação que vem à cabeça é a lendária cena da animação Os Doze Trabalhos de Asterix, em que as intermináveis cretinices da burocracia, associada a imensa má vontade das pessoas responsáveis por ela, deixe qualquer à beira de um colapso.
Felizmente, Mambrú está nesse ramo a tempo demais para se deixar abalar. Então, todo o caos a sua volta acaba se tornando fundamento para as gags que vão se entrelaçando no filme – a relação entre B, que consegue ver graça em tudo mesmo estando no meio de uma guerra, com a novata Sophie, que permanece em um estado de tensão constante por nunca ter lidado com aquilo; as diferenças culturais expostas pelo intérprete Damir, que simplesmente não consegue entender porque os estrangeiros tornam coisas simples tão complicadas; além das próprias dificuldades impostas pela guerra, como vacas mortas explosivas, postos de abastecimento que não abastecem, zonas pacificadas com milícias armadas até os dentes.
Um dos grandes valores do filme está justamente em mostrar uma perspectiva micro de eventos que normalmente observamos do ponto de vista macro. A figura do então diretor geral da ONU, o egípcio Boutros Boutros Ghalli, é constantemente motivo de piada. Mesmo na época do seu mandato, ele foi bastante criticado pelo fracasso do orgão em lidar com eventos como genocídio de Ruanda e a própria guerra da Iugoslávia. Mas é difícil imaginar, assistindo a Um Dia Perfeito, o que qualquer grande força externa poderia ter feito por pessoas não enraizadas e apegadas ao seu próprio microcosmo étnico e cultural. Um dos detalhes pontuais do filme, que constroem essa perspectiva propositalmente distante e hermética de um povo em guerra, é a trilha sonora. Ao invés de usar músicas incidentais ou folclóricas, o diretor opta por clássicos do punk e do rock alternativo dos anos 90. Anarquia pura!
Não obstante, o filme funciona também como uma grande crítica à postura prepotente de protagonistas globais em relação a conflitos locais – não apenas não ajudam, como, quando tentam, acabam atrapalhando. Isso sem mencionar o fato de que, desde então nos anos 90, até hoje já 20 anos depois, a letargia burocrática desses órgãos internacionais, assim como as disputas de poder que a provocam, ajudam a perpetuar conflitos como o representado no filme.
Poderíamos dizer que Um Dia Perfeito é uma comédia de humor negro, pois começamos com um sujeito morto e o filme se desenvolve por paisagens devastadas pela guerra. Mas, no fim das contas, parece que passamos quase duas horas assistindo a um filme de um sujeito preso em um escritório de uma empresa irritante cercado por colegas histéricos. Aranoa não força a mão e, próximo do fim da película, deixa uma certa sensação de frustração, como se algo estivesse faltando, mas o que poderia ser um ponto baixo do filme acaba sendo sutilmente resolvido pelo seu encerramento, que o coroa de maneira absurdamente hilária. É perfeito para se assistir depois daquele expediente que parece interminável, e não se incomode por ser um filme espanhol falando sobre a história da Iugoslávia. É uma história de um sujeito que poderia muito bem ser você, amigo leitor.
Se existe uma máxima que funciona em qualquer época, cultura ou local, é essa: tudo que é ruim, sempre pode ficar pior.