Toni Erdmann e o humor
Certo dia, em um dos cursos de Filosofia que frequentei, o professor nos pediu para fazer um necrológio. Ele queria que imaginássemos nossa morte e o que ela representaria para os outros. O objetivo desse exercício era fazer com que pensássemos sobre a nossa vocação e sobre aquilo que gostaríamos que constituísse a nossa personalidade e os nossos afazeres. Como estávamos todos num curso de Filosofia, a maioria dos alunos vislumbraram o desenvolvimento de um caráter ético e honesto e um destino atrelado às atividades intelectuais ou artísticas. No entanto, houve um grupo de pessoas que simplesmente não conseguiu descobrir o que, de fato, queria para as suas vidas.
Vendo essa indecisão, o professor sugeriu que todo tipo de vocação era válida, até mesmo aquelas que não encontravam uma profissão equivalente. Lembro que um dos alunos desse grupo de pessoas disse ter a vocação de fazer os outros se sentirem bem, mas que não queria ser médico, enfermeiro, trabalhar em instituições de caridade ou coisas do tipo. Ele queria apenas fazer os outros se sentirem bem. Se esse sujeito era um santo ou uma farsa, não sei dizer, mas o que posso afirmar é que não acreditei nele. Me pareceu impossível que alguém pensasse nisso como uma vocação, um verdadeiro objetivo de vida. Carreguei essa opinião durante um bom tempo. Porém, tive de mudá-la recentemente quando, assistindo ao filme alemão Toni Erdmann (Idem), fui apresentado ao protagonista Winfried Conradi/Toni Erdmann, um sujeito que personifica tudo o que aquele estranho sujeito na sala de aula disse querer para a sua vida.
(Sobre o cinema alemão, confira também as críticas de Phoenix e 13 Minutos)
No filme, o tal do Winfried Conradi (Peter Simonischek) é um homem na faixa dos 70 anos de idade que ama fazer brincadeiras. Separado e com uma filha já adulta, Ines (Sandra Hüller), ele decide aproveitar as férias para visitá-la. Chegando lá, descobre que ela está no meio de uma transação de negócios, não podendo lhe dar muita atenção. No entanto, mesmo passando poucos dias ao seu lado, ele percebe que ela é uma mulher infeliz. Se recusando a ficar de braços cruzados enquanto a filha sofre em silêncio, Winfried opta por se passar por uma outra pessoa chamada Toni Erdmann. Usando uma peruca e dentadura indecentes e fingindo não conhecê-la, ele aparece em todos os lugares que ela frequenta. Se recusando inicialmente a participar da brincadeira, aos poucos ela vai abraçando a jocosa experiência.
Escrito pela própria diretora, Maren Ade, o roteiro de Toni Erdmann é estruturado em três partes. Na primeira, conhecemos o protagonista, suas principais características e a natureza da relação que mantém com a filha. A segunda nos coloca no seio da vida profissional de Inês, com as suas conquistas e derrotas. Por fim, a terceira é dedicada às interações entre Inês e Toni Erdmann. No entanto, além de não serem divididas formalmente, essas três partes nunca soam episódicas ao espectador. As idas e vindas da trama se conectam naturalmente, dando à história um desenrolar orgânico, o que é essencial para a sensação de drama humano que o filme deseja passar (a câmera quase invisível de Maren Ade e Patrick Orth, o diretor de fotografia, é vital para a construção dessa sensação).
No entanto, é mesmo na construção de Ines e, principalmente de Winfried, que o roteiro de Maren Ade brilha. Ines é uma mulher moderna. Competente, ela luta contra a crise que assola o continente europeu para ser bem sucedida nos negócios. Porém, a solidão que acompanha o emprego, o relacionamento infrutífero com um homem que a trata como um mero objeto sexual, a tristeza de ver como o sujeito com quem deseja fechar um negócio a enxerga como uma mulher e não uma profissional (há uma dolorosa cena em que ele pede a ela que leve a sua esposa a um shopping para realizar compras) e as desilusões comuns a qualquer profissão fizeram dela uma pessoa por vezes insegura dos próprios comentários e prestes a explodir em um rompante de choro incontrolável (o momento comovente em que desaba quando o pai decide ir embora).
Já Winfried, ao contrário dela, é um sujeito pouco ambicioso. Satisfeito em ganhar a vida dando aulas de piano e colaborando num asilo, ele fez do riso alheio o seu objetivo de vida. Uma criança presa no corpo de um idoso, Winfried incorpora com perfeição todos os atributos de um palhaço (aliás, em certo momento, ele surge com uma maquiagem que possibilita essa aproximação). Ele quer fazer as pessoas rirem, se sentirem bem consigo mesmas e, o mais importante, fazer com que elas não percam o humor – como ele diz abertamente para um sujeito -, pois, assim, elas nunca deixarão de enxergar a vida com os olhos de uma criança (a câmera digital e a fotografia vibrante de Patrick Orth ilustram vivamente essa maneira colorida do protagonista ver o mundo).
E, como não poderia ser diferente, será na interação entre essas duas personalidades diferentes que surgirão as reflexões mais profundas, como o papel do humor, a relação entre pais e filhos (há uma cena maravilhosa em que Ines canta Greatest Love Of All, uma canção sobre amar a si mesmo, mas que pode ser estendida ao amor dos pais pelos seus filhos) e a questão de que não é somente Winfried que está interpretando um papel, mas sim todos nós. Nos ambientes familiar e profissional, nunca agimos completamente de acordo com as nossas inclinações e a nossa personalidade. E é ao perceber como a filha está infeliz no papel de mulher de negócios que Winfried decide intervir. Seguindo essa lógica, a cômica cena que mostra Ines dando uma festa de nudismo serve não só para completar o arco dramático da personagem, como é um poderoso simbolismo de libertação dos papéis sociais.
Mas não é fácil manter o senso de humor
No entanto, o filme sabe que não é fácil se manter constantemente livre das amarras, nem conservar o senso de humor. Há dois momentos pungentes – e nos quais há um brilhante prolongamento das cenas – em que isso fica claro. O primeiro deles ocorre após a mencionada cena da festa de nudismo, quando Ines segue o pai – que está fantasiado – e o abraça no meio da rua. Seguindo Winfried após o abraço, a câmera mostra o personagem se deitando na grama, completamente exausto com as tentativas de amolecer a filha. O outro momento são os sublimes segundos finais, nos quais ficam claro que as coisas não se resolvem como num passe de mágica e que a mensagem otimista do filme esconde toda uma complexidade de emoções e pensamentos por detrás.
Com atuações magistrais da dupla de atores principais, Toni Erdmann é o tipo de filme que, por trás da densa criação cinematográfica, consegue transmitir uma mensagem simples e doce, mas nunca martelando-a na cabeça do público ou expondo-a na forma de discursos moralistas ou piegas. Além disso, nos enche de esperança ao mostrar que, por mais que duvidemos, existem pessoas no mundo que se contentam em viver em prol do bem estar do outro, esperando na esquina mais próxima, com maquiagens, roupas extravagantes e um nariz vermelho (ou dentadura avantajada, tanto faz), prestes a nos fazer rir e esquecer dos problemas, mesmo que momentaneamente.