Thor: Ragnarok é um festival de pastiche e esquizofrenia
O gênero mais badalado da atualidade é o de “super-heróis”. Os orçamentos mais astronômicos e atenção da mídia ficam concentrados nesse tipo de filme. Entretanto, os problemas começam quando os realizadores tomam o sucesso por garantido e produzem obras sem o menor cuidado conceitual, estético e narrativo. Thor: Ragnarok, a nova aventura do Vingador de Asgard, é mais um produto enlatado a partir de remendos daquilo que deu certo no passado, mas que traz um resultado final esquizofrênico e acéfalo.
(Confira nosso Formiga Na Cabine sobre o filme!)
Dirigido por Taika Waititi (O Que Fazemos nas Sombras), Thor: Ragnarok mostra o retorno de Hela (Cate Blanchett), a Deusa da Morte, e a tentativa do Thor (Chris Hemsworth), o Deus do Trovão, de voltar a Asgard para impedir o Ragnarok (o fim do mundo na mitologia nórdica). O problema é que o protagonista está preso no planeta Sakaar e para escapar, contará com a ajuda de seu antigo aliado vingador, o Hulk. Todavia, não sem uma briga antes.
As falhas começam desde a ideia no papel
Começando pelo roteiro, o filme não desenvolve nenhum de seus personagens e se baseia exclusivamente em situações muito convenientes para dar prosseguimento a sua trama. O protagonista apresenta dois tons durante o filme todo. Um deles é apático e o outro é cômico – tentativa, pelo menos.
Não há nenhuma nuance psicológica, emocional ou física –tirando o corte de cabelo – no personagem título, apesar dos diversos acontecimentos trágicos, que deveriam gerar comoção tanto nele quanto no público. Todo restante do núcleo principal, não tem função alguma na história, podendo ser trocados facilmente por qualquer outro coadjuvante.
Sem falar na sequências de clichês que acontecem, especialmente em torno de Loki (Tom Hiddleston), que é trabalhado exatamente da mesma forma que na aventura anterior, sem novidade alguma, fazendo com que o espectador consiga antever qualquer atitude do Deus da Trapaça, até mesmo aquelas que deveriam ser reviravoltas dentro da trama.
O caráter excessivamente cômico do filme é um dos pontos mais críticos. Todos os personagens principais estão no mesmo tom de personalidade. A impressão gerada é que a instrução geral era “sempre que o outro terminar uma frase, faça uma piada“ – que, a propósito, não duvido que tenha sido.
Não é um problema o filme ter um caráter cômico – Guardiões da Galáxia é prova disso. Mas quando existe o exagero, ainda mais através de uma imposição empresarial, acaba contaminando a obra de um jeito irreversível.
Há momentos que deveriam ser dramáticos em Thor: Ragnarok, momentos estes que o público embarcaria emocionalmente na aventura. Mas a decisão dos realizadores foi a de cortar todos esses momentos com alívios cômicos, quase transformando o filme em uma verdadeira paródia pastelão do personagem. É plenamente possível produzir um filme divertido sem esse excesso de comicidade deslocada.
Falando da história em si, temos outro problema grave. A trama principal do filme não se sustenta em 2 horas – particularmente, não acho que se sustentaria por mais de 20 minutos – fazendo com que boa parte da projeção, seja formada por inúmeras situações desnecessárias e arrastadas que são concluídas de maneira conveniente demais.
Não citarei exemplos para evitar spoilers, mas só uma leve amostra em forma de pergunta: “Diante da vastidão do Universo, não é coincidência demais você cair no mesmo planeta em que seu antigo aliado está exilado e, ainda por cima, neste mesmo local haver um portal a céu-aberto que o leva diretamente para Asgard, para resolver o problema do filme?”.
É claro que estamos falando de uma diversão, mas isso não quer dizer que o público deva engolir qualquer coisa, afinal, desafiar o protagonista é de extrema importância para gerar momentos catárticos.
Estética exagerada, sem conceito e sem capricho
Na questão estética, o filme também apresenta falhas grotescas. Optando por um filme desmedidamente ultracolorido, a direção de arte usou e abusou de diversos materiais, roupas, cenários e objetos de cena de modo tão caótico que nada, absolutamente nada, desempenha uma função narrativa.
Não existe diferença cultural entre as raças, nem mesmo uma coerência de acordo com o ambiente em termos de arquitetura. Não há nenhum direcionamento conceitual para essa estética. Por mais que eu tente evitar repetir a palavra, não há melhor definição que esquizofrênica. O filme apresenta alguns elementos inspirados na estética do desenhista Jack Kirby (saiba mais em nosso vídeo), mas eles são simplesmente jogados no meio de um design de produção equivocado.
A direção de Taika Waititi é preguiçosa e equivocada em várias partes. O ritmo do filme e a cadência de cada momento carecem de uma unidade e de personalidade. Parece que cada cena foi gravada por uma equipe técnica diferente. As próprias escolhas de enquadramento não valorizam as partes de ação e nem conseguem transmitir sensação alguma, de forma que temos uma obra verborrágica em que a narrativa só acontece pela sequência de diálogos e não pela construção audiovisual em si.
O filme tem elementos inspirados em Jack Kirby, mas no geral, a direção de arte não entrega um trabalho conceitualmente sustentável.
Nem os ouvidos escapam
Indo para a sonoplastia do filme, temos um desenho de som quase que exclusivamente diegético, de forma que quase nenhum elemento sonoro é usado para expandir ou resignificar a ambientação da cena – tirando explosões, lasers e afins. Não é algo que atrapalhe o filme, mas não deixa de ser um trabalho extremamente genérico e que não enriquece a construção das cenas.
No quesito trilha sonora, temos dois principais problemas. O primeiro é que a música incidental tem um estilo techno-eletrônico oitentista, que não condiz em nada com o personagem título ou o que acontece em tela. O segundo, e ligeiramente mais incômodo, é o uso da música ”Immigrant Song” da banda Led Zeppelin de forma totalmente deslocada em cenas de batalha.
Fica óbvio que os produtores quiseram emular o estilo do filme Guardiões da Galáxia – supracitado neste texto inclusive. Todavia, essa proposta não se encaixa em Thor: Ragnarok. A música da banda britânica, de tão boa e marcante, rouba toda a cena, fazendo o público vibrar pelos motivos errados.
A primeira trilha para Thor, composta por Patrick Doyle, toca apenas na cena final, para lembrar um pouco que o personagem que estamos vendo ainda é o mesmo.
Quando nos deparamos com as produções da Marvel Studios, já sabemos que nos será entregue uma aventura divertida com algumas doses de humor. Esperar qualquer tipo de densidade maior, possivelmente gerará uma frustração inevitável.
O que não quer dizer que o filme não tem a necessidade de ser no mínimo bem feito nos aspectos mais básicos, respeitando seu público e sem considerá-lo irracional, facilmente agradado por um instinto – mas, é claro que para isso, o público tem que mostrar-se mais exigente e crítico.
Thor: Ragnarok é um filme esquizofrênico, feito à toque de caixa e sem personalidade alguma. Momentos dramáticos são cortados por alívios cômicos deslocados e que atrapalham a conexão do público com a trama. O fim do mundo realmente chegou para aqueles que anseiam por mais criatividade e coragem em blockbusters de super-heróis.