Onde está Deus em Silêncio?
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.” João 1:1.
O filósofo alemão Friedrich W. J. Schelling, em seus dois últimos escritos – A Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação -, nos diz o seguinte: desde o início da existência humana, Deus foi se revelando parcialmente através das religiões e práticas místicas, dando a cada uma delas uma parcela de toda a sabedoria divina, como se doasse membros separados do Seu corpo.
Foi apenas durante a primeira vinda de Cristo, quando o Verbo se fez carne, e a carne se fez Verbo, que Deus interrompeu o processo de auto revelação no Universo, considerando as palavras imortais do Nazareno e a Sua mensagem eterna de amor suficientes para amaciar os corações trêmulos dos seres humanos.
Brilhante e criativa, essa teoria também veio acompanhada de uma proposta de retorno da filosofia à realidade concreta das coisas, o que ia na contramão do conteúdo idealístico e alienado característico do pensamento moderno. Porém, acima de tudo isso, é a noção do filósofo alemão sobre como Deus pulsava em cada pedacinho do Universo o que mais enternecia a alma do leitor.
Já adiantada por Santo Tomás de Aquino – quando o padre católico dizia que “nós falamos por meio de palavras, Deus, por meio de coisas” -, essa percepção foi indevidamente esquecida ao longo do tempo. Até hoje, o Ocidente acredita que o único meio de comunicação entre Deus e aqueles que acreditam Nele são os livros sagrados e as doutrinas religiosas.
No entanto, estamos muito errados. Pois, se a Palavra de Deus foi o início de toda a Criação e a Revelação, o aparecimento de grande parte da Sua Verdade, é através da natureza e dos seus objetos que Deus continua a se comunicar conosco. Obviamente, serão justamente a obsessão pela palavra e a surdez aos sons circundantes que farão o Padre Sebastião Rodrigues duvidar da sua fé em Silêncio (Silence), a obra-prima definitiva de Martin Scorsese.
Afinal, são nos tortuosos caminhos percorridos ao lado do Padre Francisco Garupe (Adam Driver, que esteve em Paterson e Star Wars: O Despertar da Força) para resgatar o Padre Ferreira (Liam Nesson) do jugo dos japoneses, que Rodrigues, o protagonista do filme (representado por Andrew Garfield, visto recentemente em Até O Último Homem) enfrentará o aparente silêncio de Deus.
Ancorado pelo romance magistral de Shûsaku Endô, que, além de servir de fonte para o roteiro adaptado (escrito por Jay Cocks e o próprio diretor), nunca trata os temas que aborda de maneira superficial ou apressada, Martin Scorsese toma a inteligente decisão de transformar o seu filme num longa cinematograficamente poderosíssimo, se afastando na medida certa da sua origem textual. No entanto, isso não significa que o conteúdo do livro é deixado de lado. No filme, estão os questionamentos do protagonista, a posição do Padre Ferreira, as dificuldades que os dois padres mais jovens sofrem, a posição dos japoneses e o conflito que nasce a partir do choque cultural e religioso de dois países diferentes.
Aliás, é um grande mérito do roteiro não tratar os japoneses apenas como vilões. Através de personagens ricos e surpreendentemente tridimensionais (levando-se em conta o pouco tempo que têm em cena), o espectador descobre os motivos por detrás das suas ações. E, embora não justifiquem os seus atos, esses motivos não deixam de fazer sentido, tornando-se um elemento importante para discussão do filme.
Acertando também em manter uma narração em off que nos aproxima das indagações e sofrimentos do protagonista, o texto, ao tomar como linha mestra a ambiguidade nas ações de Rodrigues (ele estaria agindo por piedade ou orgulho?), nos revela a coragem do realizadores em problematizar as ações do personagem principal.
Essa mesma postura se repete durante as aparições de Ferreira. Inicialmente, ele surge como uma espécie de vilão, mas, com o passar do tempo, os seus comentários começam a fazer cada vez mais sentido. Até que, no momento mais impactante do longa (não mencionarei nada sobre ele, direi apenas que envolve uma imagem), percebemos que muitas das suas ideias contêm uma sabedoria divina genuína. E o fato de que ele as profira da posição em que se encontra só engrandece o filme.
O espetáculo cinematográfico de Scorsese
Porém, é mesmo através do meticuloso trabalho com as imagens e os sons que o diretor e a sua equipe transmitem o poder da história narrada. Trabalhando pela segunda vez ao lado do genial Rodrigo Prieto (a primeira foi em O Lobo de Wall Street), Scorsese e o diretor de fotografia contam toda a história através de planos estáticos, calculadamente precisos, tecnicamente complexos, férteis em detalhes e que revelam toda a riqueza natural da paisagem.
Mas, ao contrário do que seria feito numa obra mais superficial, a iluminação de Prieto não transforma essa paisagens em um espetáculo visual. Ao invés disso, ele trabalha com uma iluminação realista (eliminando quase todo tipo de romantização), usando inteligentemente elementos cênicos como velas e outras origens de fogo e progredindo de tons mais claros para tons mais próximos da natureza, como o verde e o marrom.
Os movimentos de câmera, por sua vez, são econômicos e raros, com a exceção do escandaloso e chamativo plano que se afasta abruptamente do protagonista num momento chave da história. Inicialmente, ele parece arbitrário e nada condizente com a lógica geral empregada. No entanto, ao se repetir nos instantes finais (indo na direção contrária à anterior), ele se fecha perfeitamente, completando o ciclo do arco dramático do protagonista magistralmente.
A mesma excelência é vista, ou melhor, ouvida, no design de som. Incômoda e importante para a narrativa, a mixagem de som de Silêncio é um espetáculo para ser aplaudido de pé, tanto pelo seu efeito cinematográfico quanto pelo significado temático contido. Excluindo quase todos os sons externos, ela torna audível alguns poucos barulhos selecionados. Acompanhada da trilha sonora composta quase que inteiramente a partir de sons da natureza, essa opção feita pela equipe de mixagem é essencial para indicar que, no intenso silêncio ao redor do protagonista, Deus conversa com ele através da imensa natureza circundante.
Porém, por estar surdo ao diálogo com Deus, Rodrigues imerge em um poço de dúvida e auto questionamento. Mas também será desse lamaçal que ele poderá ressurgir com a fé renovada e entendendo a verdadeira relação do Ser divino com as suas criaturas.E é no entendimento dessa relação que o filme nos apresenta à sua redentora mensagem: independentemente do que os católicos dizem ou da intensidade com que seguem os ritos da sua religião, é no seu coração, e lá apenas, que Deus buscará a verdade dos seus sentimentos.
Afinal, o que devemos fazer quando se é católico por dentro, mas realidades externas, como a negação forçada, a proibição do exercício do catolicismo ou o fato de a Santa Igreja não mais lhe representar o impedem de seguir fiel aos ensinamentos religiosos? Silêncio, o novo filme de Martin Scorsese, lhe dará a resposta: devemos nos atentar para as falas de Deus proferidas através da Natureza. Pois Deus está em todos lugares. Como dizia o Apóstolo Paulo: “Nele vivemos, nos movemos e existimos”. Fora Dele não há nada. Nada.