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Robocop (2014) – O homem, a máquina e os EUA

Remakes são complicados. Quando o filme é desconhecido, tudo bem, mas quando Hollywood inventa de atualizar algo considerado canônico, aí começa uma choradeira geral muito antes de sair qualquer trailer ou até mesmo uma simples foto. José Padilha, como qualquer cineasta estrangeiro estreando na terra do Tio Sam, aceitou comandar uma refilmagem, e nas condições mais difíceis que a situação pode ter. Robocop é aquele tipo de personagem considerado intocável, mesmo tendo apenas em seu filme de estreia, em 1987, uma obra de peso, sendo desperdiçado em duas continuações podres, em 1990 e 93, e em passagens esquecíveis pela TV. Evidentemente, o alvo do remake é o primeiro filme, então a gritaria e o temor foram grandes.

Houve dúvidas sobre a capacidade de Padilha contornar as exigências, muitas vezes estapafúrdias, que os produtores normalmente fazem, pois Robocop, afinal de contas, é também uma marca que precisa gerar dinheiro justificando o investimento. Ninguém questionava o talento do brasileiro que marcou nosso cinema com seus dois Tropa de Elite, cujo conteúdo violento e político parecia bem análogo ao universo do policial ciborgue, mas todos sabemos que a violência no cinema não anda de mãos dadas com as grandes bilheterias. O público sentiu calafrios quando foi anunciado que a classificação etária do filme seria PG-13, normalmente destinada a filmes família, conceito que passa muito longe do filme de 1987. O cheiro de cineasta amarrado e amordaçado ficou mais forte.

Eis que, numa virada bastante admirável, o novo Robocop não só honra e homenageia o original, como também aumenta o alcance das discussões daquele filme, no intuito de abranger diretamente alguns tópicos mais atuais da política norte-americana. O remake nos mostra um contexto de utilização maciça de drones – máquinas de guerra não tripuladas – pelos Eua em intervenções militares no exterior. A fabricante de armas OCP, mirando o mercado interno, tenta derrubar a lei que proíbe a utilização dessas máquinas em solo estadunidense. Para tentar mudar a opinião pública, e burlar a lei, surge a ideia de colocar um ser humano dentro de um drone. Alex Murphy, policial vítima de um atentado a bomba, tem a utilização do seu corpo mutilado autorizada por sua esposa, e assim nasce o novo Robocop.

Retrato pouco lisonjeiro da mídia.

Retrato pouco lisonjeiro da mídia.

Desde o início ironizando as atuações militares da vida real, a figura do apresentador de TV caricato, a favor da política belicista, serve aos propósitos narrativos de contextualizar a situação para o espectador, além de fazer uma bela crítica sobre a irresponsabilidade da mídia. A sequencia que abre o filme é tão contundente que gera um interesse que não se esgota pelo filme inteiro. O conceito Frankensteiniano da ficção científica também se apresenta fortemente quando questionamos, juntamente com alguns personagens, o que realmente é essa criatura robótica que ainda é chamada de Alex Murphy. O policial aqui não teve sua memória apagada como no original, mas nem por isso ficou mais fácil decidir por um dos lados da dicotomia homem/máquina. Este Robocop, como personagem, incorpora também outra discussão muito pertinente sobre invasão de privacidade, já que possui uma conexão com todas as câmeras de segurança da cidade, além dos bancos de dados da polícia.

Nenhuma novidade quanto à atuação da OCP, tão desprovida de ética – mas aclamada pela mídia – que chega a corromper as boas intenções primárias da ciência, aqui personificadas na figura do relutante cientista criador do projeto. Completando essa teia de relações, existe ainda a esposa e o filho pequeno de Murphy, desesperados, sem saber o que de fato acontece em todo o processo. No meio das visões e demandas da mídia, da corporação, da ciência e da família, é o homem despersonalizado e desumanizado, ainda lutando para preservar algo de si mesmo, quem mais sofre. Em determinado momento, Murphy/Robocop pede a própria morte, mas desiste após ser lembrado, de forma conveniente, que sua família precisa dele.

Mais ágil e modernizado, incorporando a paranóia do mundo real!

Mais ágil e modernizado, incorporando a paranóia do mundo real!

Como quase nada é perfeito, o filme também tem seus problemas. No elenco, os sempre competentes Samuel L. Jackson, como o apresentador de TV, e Gary Oldman, como o Dr. Norton – criador do Robocop – desempenham muito bem seus papéis, diferente de Michael Keaton como CEO da OCP, que vez por outra exagera, inexplicavelmente, em alguns maneirismos. Joel Kinnaman, por outro lado, se mostra um tanto inexpressivo enquanto Alex Murphy no início da história. O roteiro poderia desenvolver melhor alguns personagens, como Lewis, o parceiro de Murphy. Uma pena, pois o ótimo ator Michael K. Williams, da série Boardwalk Empire, acabou subaproveitado. Padilha também perdeu a chance de trabalhar melhor alguns momentos-chave do filme, como o atentado a Murphy, que não impressionam unicamente por serem construídos de forma pouco inspirada. A violência é bastante atenuada (PG-13, lembra?) não deixando o sangue aparecer, o que acaba diminuindo o impacto em algum momento. Clichês? Sim, o filme cede a alguns até bastante óbvios, mas é bom deixar claro que se levarmos em conta a situação do diretor, pressionado por um estúdio detentor de uma marca milionária, isso é um pecado menor. Apesar de obrigado a considerar o público adolescente, o resultado final está longe de ser superficial.

Com uma bilheteria modesta em sua abertura nos Eua, o destino da franquia ainda não foi anunciado. Ainda pode ter mais sorte que o original em termos de qualidade de continuações, mas agora isso é o que menos importa. Independente dos resultados financeiros, José Padilha convenceu, entregando uma ficção científica que faz jus ao que o gênero tem de melhor, e ainda diverte nas cenas de ação. A discussão sobre o que nos faz humanos sempre será relevante, e numa época em que todos somos um pouco máquinas, talvez o policial ciborgue -seja o original ou sua versão modernizada – esteja mais atual do que nunca.

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