Quase 30 anos depois de seu lançamento, Robocop, de Paul Verhoeven, continua um filme bastante relevante, no sentido de suscitar diversas discussões a respeito de suas alegorias e metáforas. Abstraindo uma ou outra limitação técnica da época, esta ficção científica honra seu gênero, pois as preocupações inerentes ao texto ganharam um tom irônico, em alguns momentos até satírico, que passa despercebido pelo espectador menos afeito a refletir e elaborar suas próprias interpretações. O próprio conceito geral da maior parte do público faz parte dessa ironia sutil, e traz a pergunta se os produtores estavam cientes dessa leitura, ou se também viam ali apenas mais um filme de ação.
Através de telejornais e comerciais, o mundo de Robocop é exposto para a plateia, que percebe logo de cara a estupidez política e o potencial de destruição dos conflitos civis e militares fora dos EUA. As propagandas mostram o tipo de mentalidade do cidadão médio norte-americano, que gargalha assistindo a um programa de humor baseado em bordões. Aqui, a máquina capitalista do cinema hollywoodiano inverteu a fórmula, criticando abertamente a era Reagan. Na Detroit dominada pelo crime em que se passa a história, as coisas vão muito mal, pois a polícia, privatizada e controlada pela multinacional OCP, ameaça uma greve. Após o fracasso no teste do projeto robótico de manutenção da lei e da ordem, o devastador ED-209, é dado sinal verde para a criação de Robocop.
Um não corre e o outro não desce escadas.
O surgimento de um policial robô, agora utilizando um cadáver bastante avariado de um policial morto no cumprimento do dever, é algo muito simbólico aqui. Uma vez que não há no roteiro nenhuma tentativa de criar uma aura de altruísmo no funcionário da OCP responsável pelo projeto – um yuppie usuário de cocaína e oportunista – vemos o caráter do personagem desnudado como alguém realmente desprezível, a ponto de mandar descartar outras partes humanas do policial que pudessem ser salvas do pescoço para baixo. Uma alusão perfeita à desumanização de um trabalhador de qualquer tipo. Já completamente operacional, o projeto Robocop é um sucesso e de fato diminui a criminalidade, mas a que preço? O agente da lei perfeito sob a ótica ultra-capitalista da OCP, como referência a todo e qualquer subordinado, é uma máquina que não questiona e necessita de pouco descanso e alimentação. Apesar da eficiência comprovada no universo do filme, parece um tanto estranho que esse policial sem falhas se mova tão devagar e a passos barulhentos, incapaz de correr. O ED-209 é ainda mais limitado que Robocop em termos de mobilidade. É bastante ilógico imaginar que no futuro, a ferramenta de manutenção definitiva da lei – e repressão – teria tantas limitações básicas, algo que agradaria bastante o mundo do crime, mas podemos especular se isso também não faz parte de uma alegoria quanto a um rigor truculento da justiça e sua lentidão, concluindo que sua eficiência é apenas aparente.
Seguindo o raciocínio do tipo de demanda que existe para a força de trabalho no futuro, em qual ponto o funcionário-padrão passa de solução a problema? Neste caso específico, quando as memórias de Alex Murphy, o policial morto, vêm à tona. Num processo de (re)humanização, Murphy/Robocop agora procura a resposta sobre o que realmente aconteceu com ele, algo que não interessa a seus patrões, por dizer respeito unicamente ao seu bem-estar como indivíduo. Mais importante que isso, aquilo realmente ainda é Murphy? Ou seria apenas uma máquina que herdou acidentalmente traços dele e por reflexo assumiu essa identidade? Uma questão bastante similar à criatura de Frankenstein.
Robocop ainda homenageou e se beneficiou de outra obra que quebrou paradigmas naquela mesma década. A HQ O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, poucos anos antes mostrou um Batman envelhecido retornando ao combate ao crime, numa Gotham City em um nível de decadência social avançado. Paul Verhoeven tomou emprestado dos quadrinhos o recurso narrativo de situar o público através da mídia, aqui especificamente a TV, desenvolvendo naturalmente a história sem parecer didático. Também existem semelhanças na forma como a política é retratada e como interesses corporativos são colocados acima do povo em geral. O filme também tem uma cena com uma relação mais direta com a HQ, quando Robocop quebra uma parede para alcançar seu alvo. Refletindo as preocupações da época (e de hoje), como a política externa norte-americana e a voracidade do sistema financeiro, que provaram não ser exageradas, tanto O Cavaleiro das Trevas quanto Robocop são obras irmãs que não perderam sua força com o passar dos anos.
Duas esquecíveis e intragáveis continuações foram produzidas a partir deste pequeno clássico. Pela similaridade temática com seu trabalho, Frank Miller foi contratado para roteirizar o segundo filme, mas alega que teve seu texto tão alterado a ponto de ficar irreconhecível. Sem Verhoeven dirigindo, esse roteiro acabou sendo dividido em dois filmes, com o terceiro sendo o pior deles. Tudo que tornava o primeiro especial foi deixado de lado em favor de um exagero gráfico sem substância. Ironicamente, o filme original é o que mais tem a ver com os bons trabalhos de Frank Miller, parecendo realmente um roteiro de sua autoria, porém, é o único no qual ele não participou. Um destino inglório para um personagem com tanto potencial em um filme com algumas camadas de interpretação, mas pelo menos ficou um grande filme para a ficção científica contemporânea. Melhor sorte para o remake…