Redemoinho é a estreia de um diretor promissor
As telenovelas brasileiras têm uma linguagem cinematográfica muito limitada. Os seus diretores artísticos, por mais talentosos que possam ser, não têm a oportunidade de realizar enquadramentos mais trabalhados, construir movimentos de câmera mais complexos ou compor uma mise-en-scène mais detalhada. Tudo o que precisam fazer é mostrar os rostos dos atores famosos e deixar claro, da forma mais didática possível, quais são os desdobramentos da trama. Embora alguns canais tenham investido recentemente em mini séries com uma linguagem mais evoluída, ainda assim a diferença técnica entre a televisão brasileira e o Cinema é abismal.
(Falando em Cinema Nacional, não deixe de ler também as críticas de Amor no Divã e O Filho Eterno)
Não é à toa que, sempre que tentam fazer a transição de um programa da tela pequena para a tela grande, ou um diretor migra de uma mídia para outra, o que se tem é a sensação de um episódio estendido, com os mesmo recursos usados nas produções televisivas sendo extrapolados para que o projeto possa ter a duração de um longa. No entanto, de vez em quando, surge um nome como o de José Luiz Villamarim, que, mesmo tendo uma carreira consagrada como diretor geral e artístico de novelas da Rede Globo, estreia no Cinema com Redemoinho, um filme que compreende muito bem a linguagem cinematográfica, mostrando que o agora cineasta tem uma noção completa das discrepâncias entre as duas mídias.
O filme conta a história de Luzimar (Irandhir Santos). Trabalhando como supervisor de uma fábrica de tecelagem numa cidade chamada Cataguases, no interior de Minas Gerais, ele leva uma vida sossegada ao lado da esposa, Toninha (Dira Paes). Porém, tudo muda quando, indo visitar a mãe, reencontra no meio do caminho Gildo (Júlio Andrade), um amigo de infância que mora atualmente em São Bernardo, e a sua mãe, Marta (Cássia Kis Magro). Juntos, ele e Gildo começam a revisitar a cidade onde nasceram. Todavia, o que era para ser apenas uma celebração da infância e adolescência logo se transforma num mergulho ressentido em arrependimentos e segredos do passado.
Redemoinho já inicia com um belíssimo movimento de câmera numa ponte sob a chuva. Quase onírica, essa breve cena já é um prenúncio da melancolia que aguarda os personagens e o espectador. Após essa espécie de prólogo, a câmera acompanha por longos minutos gestos simples como o de caminhar, andar de bicicleta, dirigir um carro, abrir uma porta e mexer numa máquina. Embora possam ser considerados irrelevantes, esses momentos são perfeitamente enquadrados e seguidos pela câmera, que dá a eles uma textura cinematográfica e um caráter hipnotizante, uma vez que não conseguimos desgrudar os olhos da tela, mesmo que nada de muito importante esteja acontecendo.
Entretanto, essa sequência inicial de gestos não funcionaria se o design de som não fosse trabalhado com o mesmo brilhantismo. Começando com uma transição magistral do barulho da chuva da primeira cena para o som quase similar das máquinas de tecelagem (um mérito também compartilhado por Quito Ribeiro, o montador), o desenho de som que ressalta o choque das rodas da bicicleta com a terra da estrada barrenta, a fricção do trem nos trilhos, o barulho do vento, a chuva, os sons da fábrica e o silêncio em contraste com as poucas falas é essencial para criar essa textura cinematográfica hipnotizante.
Ademais, essa lógica sonora também será essencial no restante do filme. Ressaltando o barulho de coisas que acontecem tanto dentro quanto fora do quadro (a passagem do trem, marcando a vida dos personagens, é um dos elementos recorrentes), o design de som alternará em certos momentos o som mais aberto com o som mais fechado por causa do aparelho auditivo do protagonista (Luzimar o usa por causa dos barulhos literalmente ensurdecedores das máquinas de tecelagem). Além disso, corroborará o comentário proposto pelo filme de que, ao contrário do que as pessoas imaginam, as cidades do interior são muito mais escandalosas que silenciosas. E, por fim, ainda encontrará tempo de construir uma rima maravilhosa entre o já mencionado barulho da chuva na primeira cena com o som do chuveiro e também da chuva em seus segundos finais.
Ainda analisando os aspectos técnicos, José Luiz Villamarim e o genial Walter Carvalho realizam um trabalho tão memorável quanto Waldir Xavier, Armando Torres Jr. e sua equipe de som. Compondo planos longos (há um uso recorrente de travellings) que causam um certo embaraço no espectador (o primeiro diálogo mais íntimo de Luzimar com Gildo é um longo plano no qual ficamos incomodados tanto quanto os personagens), Villamarim e Carvalho (e, novamente, Quito Ribeiro) também mantêm em determinados momentos os planos rodando mais do que o necessário. Intuitivamente, o espectador sente que já devia ter acontecido um corte, mas a extensão “indevida” deles é proposital, uma vez que criar um constrangimento no público similar ao dos personagens é uma das principais intenções dos realizadores.
Investindo também em uma atmosfera claustrofóbica (a iluminação escura é importantíssima na criação dessa atmosfera), Villamarim e Carvalho acertam ao transformar a cidade de Cataguases em uma personagem da história. Eles retratam toda a sua miséria, mas nunca em planos isolados, e sim em segundo plano, como pano de fundo da história. Essa escolha é essencial para ilustrar o aprisionamento dos personagens àquele mundo, como almas perdidas incapazes de escapar da mediocridade do ambiente que os cerca. Além disso, eles também compõem alguns planos recheados de significados, como aquele colocado na altura dos pés (e que revela o acontecimento central da trama) ou o que mostra Luzimar em primeiro plano entrando na casa de Marta, que está desfocada em segundo plano (ilustrando as incertezas emocionais que aguardam o protagonista pelas próximas horas).
Um bom roteiro de George Moura
No entanto, nada disso seria importante se a trama contada por Redemoinho não fosse capaz de prender a atenção do espectador. E, embora seja o elemento mais irregular do filme, mesmo assim o texto de George Moura contém méritos que merecem ser destacados. Contando uma história sobre passado e amarguras, o roteiro nos apresenta a personagens interessantes e complexos: Luzimar é um sujeito ao mesmo tempo satisfeito e incomodado com a sua atual situação; Gildo esconde por detrás do sucesso financeiro toda a sua vulnerabilidade emocional; Marta é a personificação da resignação intelectual e emocional ao ambiente circundante; e Toninha vislumbra no casamento com Luzimar a possibilidade de construir uma família que a sua juventude não possibilitava.
O roteiro também é bem sucedido no crescendo presente nas conversas do protagonista com Gildo ao longo da narrativa. Inicialmente, as interações são envergonhadas, depois ficam mais soltas, passam a ser jocosas, começam a se tornar mais tensas e culminam num rompante de agressões verbais (é interessante notar como esse redemoinho de emoções – fazendo jus ao título – é simbolizada pela troca de camisetas de Luzimar). Também acertando na alternância entre as interações de Luzimar e Gildo com as cenas que acompanham o dia de Toninha, o roteiro de Moura só peca na construção de alguns diálogos expositivos (quando o mistério final é revelado, eles são abundantes) e na subtrama envolvendo a irmã do protagonista, que é mal desenvolvida e desnecessária.
Com atuações intensas de todo o elenco, Redemoinho é um filme que está aí para contrariar a ideia de que profissionais oriundos da televisão não conseguem se adaptar às difíceis exigências do Cinema. Ao que tudo indica, José Luiz Villamarim saiu da televisão para entrar de vez dentro do cenário cinematográfico.