A noção comum do cinema brasileiro é sobre uma luta de classes: de um lado, as comédias comerciais rasas, com tramas vivenciadas pela classe média alta que simboliza o sonho de consumo do público habituado com telenovelas. No mesmo grupo das risadas superficiais, tipos caricatos e exagerados frequentam as igualmente romanceadas periferia de folhetim. No outro lado, estão os considerados “filmes de qualidade”, que tentam construir tramas mais complexas, por vezes inspiradas na linguagem europeia, tentando impingir uma veia artística ao cinema nacional, como a que já está consolidada em nossos vizinhos argentinos. Fator marcante nestas obras, é também a forte presença do fator social: normalmente são os socialmente excluídos e economicamente oprimidos que tentam levar sua humanidade para além dos infortúnios impostos pelo ambiente desfavorável. Nunca são comédias, são dramas em essência, com menores ou maiores doses de romance acalentador, como manda a cartilha do bom cinema de qualidade. Pensem nos (poucos) grandes filmes brasileiros ovacionados pela crítica e procure por algum que fuja do drama social e da edição reestruturada. Fatalmente, não será grande a sua lista de resultados.
A este segundo grupo pertence Quase Samba. Primeiro longa-metragem do até então diretor de curtas Ricardo Targino, o filme conta a história de Teresa (Mariene de Castro), uma pobre sambista de rádio que tenta recomeçar sua vida no último mês de gravidez, mas não consegue se desprender dos dois homens responsáveis pelos seus dramas do passado. A cantora se apoia na amizade com Shirley (Cadu Fávero), uma travesti desiludida consigo própria, na criação do filho pequeno, cujo pai é uma fonte de problemas, e na música, com a qual a protagonista alimenta sua vida. A música, por sinal, permeia toda a obra, fazendo deste um daqueles filmes musicados, sem serem, necessariamente, musicais.
Com uma premissa interessante sobre a violência contra mulher, o recomeço, a cultura popular e o peso do passado frente às decisões da vida em um núcleo social irregular, Quase Samba tinha tudo para despontar como mais uma referência de filme nacional de qualidade. Mas, infelizmente, não consegue sair do quase, pois justamente das qualidades da produção é que surgem os principais defeitos.
Em uma trama que exige muitos atores, o elenco fica aquém do esperado, deixando uma sensação de frustração no espectador a cada cena-chave. A profundidade da narrativa se esvai pelos dedos do diretor que não consegue arrancar dos quatro atores principais a energia que a mensagem incutida na história poderia possuir. O problema é mais grave com o cantor/ator Otto, que interpreta um policial corrupto e violento que aterroriza a pobre Tereza. Suas cenas são tão constrangedoras que parecem ter sido propositadamente reduzidas do roteiro, resultando em uma trama esburacada para um personagem fundamental para o desenrolar da história. O apaixonado Charles (João Baldasserini), um personagem que ameaça na ambiguidade de caráter, mas avança mesmo na composição romântica com a protagonista (uma triste perda de oportunidade para o diretor compor uma obra mais complexa), não consegue deixar de ser apenas um chato que irrita a cada aparição. No quarteto, o leve destaque fica mesmo por Mariene de Castro, que realmente estava grávida durante boa parte das cenas, e Cadu Fávero, pelo empenho que se entrega ao seu personagem, sem torna-lo caricato.
O roteiro e a edição são outras duas promessas que não se cumprem. O primeiro parece comprimido, com passagens reduzidas ao máximo simplesmente para se evitar que fossem extintas por algum motivo oculto. Repare nos personagens que aparecem, prometem e desaparecem deixando apenas um ué na cabeça de quem assiste. A construção das cenas desfavorece a complexidade humana que a história exige. Passagens importantes acabam de forma veloz e sem cuidado, enquanto cenas sem nexo se estendem por longos e tediosos minutos. Seguindo a cartilha dos filmes de arte, o roteiro inclui poéticas cenas descoladas da trama principal, infiltrando digressões que não desconstroem totalmente a linearidade da obra. Na mesma toada, a montagem valoriza esses movimentos narrativos somando-os à musicalidade do filme. Uma tentativa nobre, mas sem o apoio dos outros elementos técnicos e humanos da produção, o resultado é filme que na maioria do tempo é hermético e pouco acessível ao público.
Enfim, Quase Samba é realmente um filme de quases. Tem um quase ator, um quase bom roteiro, um quase musical. Uma bela proposta de se fazer mais um filme digno no subvalorizado cinema nacional. Se propõe como uma homenagem à Mulher brasileira- suas dores e forças – através de temas polêmicos no espectro político e social. No entanto, tão bonita iniciativa não se completa em um filme convincente. Mas as qualidades do filme de Targino estão ali para provar que falta muito pouco para termos um samba completo.