Ainda que seja capaz de entreter, Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas peca muito na parte histórica
A apresentação do texto pode gerar comentários do tipo “Ah, que chatice… Filmes podem tomar certas liberdades… não há sentido em cobrar fidelidade extrema… bla bla bla”. O problema é que eu mesmo concordo com esse tipo de colocação, mas qual é o limite destas “licenças poéticas” que uma obra pode adotar? Seja qual for o parâmetro, Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas (Professor Marston and the Wonder Women) dá a impressão de ignorar convenientemente o caráter factual da história. Mesmo assim, em uma visão geral, não deixa de ser um bom filme, desde que as expectativas estejam devidamente controladas.
William Moulton Marston (1893-1947) é ninguém menos que o criador da Mulher-Maravilha. Evidente que o sucesso do filme da heroína viabiliza uma cinebiografia dedicada a ele, ainda mais com o material interessante que sua vida – profissional e particular – fornece. Psicólogo e professor universitário, Marston é o inventor do polígrafo, o famoso detector de mentiras, além de viver maritalmente com duas mulheres e seus filhos com ambas.
Professor Marston… começa mostrando o protagonista, vivido por Luke Evans (da versão live action de A Bela e a Fera), apresentando-se à Associação de Estudos Infantis dos EUA. O motivo é o conteúdo assumidamente fetichista das HQ’s da Mulher-Maravilha. Durante o depoimento, flashbacks contextualizam sua vida acadêmica em parceria com sua esposa Elizabeth (Rebeca Hall, de O Jantar) e a atração mútua pela aluna Olive Byrne (Bella Heathcote, de Demônio de Neon).
O roteiro, escrito por Angela Robinson, também diretora do filme, abraça uma fórmula comum dos filmes biográficos. Sujeito fora do convencional que paga caro pela sua visão, lutando contra um mundo retrógrado, percebendo que tudo vale a pena em nome de sua causa e do amor. Logo no início, fica claro para o espectador quais são os obstáculos que esses personagens encontrarão pelo caminho, depois de assumirem seus desejos.
A criação do ícone feminista
Costuma-se aceitar que Marston criou a Princesa Amazona com traços psicológicos de suas parceiras, situação recriada no filme. Os elementos característicos de dominação e submissão, representando Elizabeth e Olive como contrapartes necessárias dentro da vida compartilhada, são expostos aos poucos. O momento culminante descrito nesta narrativa é a descoberta da cultura do fetiche, dando origem à indumentária e pano de fundo da heroína.
Enxergando a mídia emergente dos quadrinhos como uma poderosa ferramenta educativa, o psicólogo insere ali sua visão feminista. Mas o filme não é exatamente sobre a criação da Mulher-Maravilha, como já deve ter ficado claro, embora os detalhes da inspiração estejam presentes na vida pessoal do protagonista. A história gira em torno do direito que cada um tem de viver como bem entende. Neste ponto, de uma forma modesta, ele é bem sucedido e não desperdiça o tempo do público, nem ofende sua inteligência.
As qualidades do filme
Sem apelar para grandes viradas dramáticas e controlando bem o fluxo dos acontecimentos, Angela Robinson conduz Professor Marston… de uma forma segura e sem surpresas. Com mais experiência dirigindo episódios de séries televisivas, ela, pelo menos, conseguiu performances muito boas de seus atores.
Luke Evans se mostra à vontade, entregando um Marston contido e convincente nos momentos de maior tensão. Como personagem principal, tinha um fardo pesado nos ombros, correndo o risco de acabar com a credibilidade da história, mas saiu-se bem. Felizmente, contou com uma parceira de peso, valorizando bastante o resultado final.
Rebeca Hall é o destaque no elenco. Sua Elizabeth traz contradições interessantes, com a atriz dando conta de todos os momentos emocionais diferentes que precisa retratar. Da relutância inicial à entrega, enfrentando o peso de ser mulher em um mundo machista, sua composição cria um contraste agradável com a doçura e (relativa) ingenuidade que Bella Heathcote traz com Olive. O trio segura bem este conjunto.
Os verdadeiros problemas
Lá vamos nós ao que foi comentado no início. Nada contra mudanças que acrescentem, dramaturgicamente falando, mas encontramos algumas em Professor Marston… que são um tanto mais complicadas. A imprecisão histórica já aparece logo no início, na perseguição que os quadrinhos sofreram, com direito a fogueiras públicas. Pelo ano de sua morte, Marston nem chegou a vivenciar esse contexto extremo.
Imaginando que isso seja uma tentativa de vincular o repúdio geral às HQ’s à vida particular do protagonista, ainda assim é uma ideia que não chega a ser desenvolvida. Conforme já foi observado, o mundo dos comics e a Mulher-Maravilha são quase acessórios cosméticos aqui. Nada diretamente contra essa opção, mas o potencial da história real do biografado acaba desperdiçado.
O preconceito de Elizabeth em relação aos quadrinhos também distorce fatos, mas até funciona na construção da personagem. Ironicamente, é um detalhe que pode irritar quem conhece essas biografias. O próprio retrato deste relacionamento a três foi contestado veementemente por Christie Marston, neta do psicólogo. A acusação é que existe excesso de sensacionalismo da parte de Angela Robinson.
Mas, se os detalhes acima tem um peso relativo para o grande público, quando se dissemina uma informação errada naqueles tradicionais letreiros no final dos filmes biográficos, explicando o que aconteceu depois, a coisa fica mais séria. Ali, a informação de que a Mulher-Maravilha teria perdido seus poderes logo após a morte de Marston é de um sensacionalismo até pior do que a vida sexual do trio. Isso aconteceu com a personagem somente em 1968, por conta de uma reformulação editorial.
No fim das contas…
Possivelmente, existem várias outras liberdades, mas apenas as mais óbvias já servem para tirar pontos do filme. Nem entramos no mérito desta vida doméstica ser tão harmoniosa, prejudicada apenas pelo preconceito externo, pois isso depende mesmo da boa vontade do espectador.
Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas é aquele tipo de sessão que cumpre sua função de entreter por cerca de duas horas, sem muita pretensão. Uma pena, pois havia recursos para mais do que isso. Desde que não seja tomado como fonte biográfica, está valendo.