Polícia Federal: A Lei É Para Todos arranha apenas a superfície dos acontecimentos
Como todas as outras artes, o cinema também se alimenta da realidade e, por ser uma mídia narrativa, eventos reais podem inspirar os cineastas tanto quanto ideias, paisagens, canções e sentimentos. Às vezes, em razão da própria vida se encarregar de ser mais criativa que os roteiristas, algumas histórias surgem prontas para serem filmadas. Assim, era uma questão de tempo até que a famosa Operação Lava-Jato migrasse dos documentos oficiais para a tela grande. No entanto, ninguém imaginava que Polícia Federal: A Lei É Para Todos seria realizado e lançado enquanto as investigações ainda aconteciam!
Porém, como não há problema algum em lucrar, não nos aprofundemos nessa questão. É melhor ir direto à trama. Nesta, acompanhamos o delegado Ivan (Antonio Calloni). Chefe de uma competente equipe formada pelos policiais Julio César (Bruce Gomlevsky), Vinicius (João Baldasserini) e Bia (Flávia Alessandra), ele e os seus comandados investigam as relações de poder entre doleiros e traficantes de drogas. Mas, ao longo da investigação, o que parecia ser um simples caso de corrupção empresarial se estende às principais empreiteiras do país, chegando nos nomes das figuras mais importantes de Brasília.
Enquanto thriller político, Polícia Federal: A Lei É Para Todos é um bom filme. Marcelo Antunez, diretor acostumado a realizar comédias rasteiras, surpreende e, ao lado de sua equipe, mostra conhecer as convenções do gênero. Os letreiros usados para situar o espectador na cronologia dos eventos surge sempre de maneira precisa, a câmera, ao mesmo tempo que treme para transmitir a sensação de instabilidade, enquadra a ação com clareza, a montagem ágil de Marcelo Morais nunca deixa o ritmo se tornar irregular, a fotografia de Marcelo Brasil (o mesmo de Gostosas, Lindas e Sexies), juntamente com a direção de arte e figurino, investe em tons desprovidos de vida, mergulhando os personagens em ambientes frios, e a trilha sonora mantém a história embalada. Como os filmes de gênero ainda engatinham no país, esse nível de competência não é muito comum.
Os roteiristas, por sua vez, sabem que um dos atrativos da obra é a ordem dos eventos, que é disposta com muita segurança pela dupla Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein. Desde a interceptação de caminhões transportadores de drogas até a prisão coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Ary Fontoura, que acerta ao não recriar a voz rouca), o espectador compreende perfeitamente quais foram os documentos, provas e delações que levaram os policiais de um ponto ao outro. Nesses instantes, eles apresentam os acontecimentos com precisão e até a exposição verbal e imagética (em alguns momentos, o investigador explica coisas aos outros personagens usando uma lousa) é inteiramente justificada.
Todavia, os dois também usam essa exposição para revelar o interior dos personagens, e isso acaba gerando vários instantes nos quais os policiais precisam falar sobre suas frustrações e expectativas. Com a exceção de um drama envolvendo a mãe de Júlio, nenhum sentimento é transmitido visualmente. Tudo é feito através de palavras. Quando um investigado é preso, os policiais gritam e falam sobre a felicidade de tê-lo pegado. Nos instantes em que o oposto acontece, eles xingam, amaldiçoando o país e o mundo (inclusive, há um exagero na forma como o filme e os personagens ressaltam que a corrupção é um fenômeno presente desde os primeiros anos da história brasileira). Porém, essa superficialidade no tratamento da imagem não é um fenômeno isolado.
Na abordagem temática, ela se repete. E este é o erro central de Polícia Federal: A Lei É Para Todos: se fosse um documentário informativo sobre o desenrolar da Operação Lava-Jato, as sensações do espectador seriam as mesmas. Quando pensamos em filmes similares como Todos os Homens do Presidente e Zodíaco, nos quais também há tramas investigativas, lembramos que, no primeiro, a intenção era ilustrar os pormenores da profissão jornalística, e no segundo, como a obsessão dos investigadores trouxe consequências desastrosas em suas vidas pessoais. No longa de Marcelo Antunez, a investigação se encerra em si mesma e o filme nunca olha para os lados nem se aprofunda em uma questão específica.
Mas seria injusto dizer que essa culpa recai somente na realização técnica dos responsáveis. Aqui, também há o problema da ausência de perspectiva histórica. A operação da Polícia Federal ainda está acontecendo. Por causa disso, não dá para mergulhar nos detalhes técnicos ou dizer como o trabalho afetou a longo prazo a vida dos envolvidos. É verdade que existirá uma sequência (tem uma cena pós-créditos anunciando o próximo filme), mas isso não é suficiente para justificar a superficialidade desta primeira produção. Do ponto de vista comercial, não há por que maldizer a opção dos realizadores de aproveitar o momento para lucrar. Já do ponto de vista histórico, esse imediatismo atrapalhou a concepção artística (embora um pouco mais de liberdade poética por parte dos roteiristas fosse bem-vinda).
Aliás, isso é algo que atrapalha até na nossa reação quando algumas figuras reais aparecem. Todas as vezes em que estas surgem, com um destaque para Lula, rompemos a suspensão de descrença e rimos. Isso acontece porque as imagens dessas figuras públicas estão muito frescas na nossa cabeça e qualquer tipo de caracterização soa cômica, não real. O fato de todas as atuações, em um momento ou outro, se tornaram caricatas contribui negativamente para essa sensação (as exceções são Antonio Calloni e Marcelo Serrado, os únicos que encontram o tom correto).
Um filme partidário?
Ainda sobre as caracterizações, é possível que muitas pessoas vejam na forma como os personagens são retratados um tipo de inclinação política: Moro é um homem de fala mansa, professor universitário, pai de família e esposo atencioso, ao passo que Youssef, Lula e os outros são seres repulsivos. Porém, dizer que o filme é partidário é trazer uma discussão que acontece fora das telas e não algo que o próprio longa apresenta. É importante lembrar que os heróis são policiais fazendo apenas o seu trabalho. Portanto, através da subjetividade deles, fica muito claro quem são os vilões. Pode até se discutir se o longa defende um lado, mas, novamente, isso ocorre por adições feitas externamente. Em sua essência, a história é a famigerada luta de Davi contra Golias.
Dessa maneira, não há dúvidas que Polícia Federal: A Lei É Para Todos gerará polêmica. Não obstante, analisar o longa politicamente não seria condizente com a sua proposta de thriller. Acima de tudo, é necessário julgá-lo pelos seus méritos técnicos e narrativos. E eles existem, mas não em um número capaz de se sobrepor ao de defeitos.