Jodorowsky relembra parte do seu passado em Poesia Sem Fim
Quase todos os artistas, caso tenham a sorte de atingir uma idade elevada, olham para trás e fazem uma obra sobre o próprio passado, seja com o propósito de simplesmente retratá-lo, seja com a intenção de refletir sobre ele. É uma chance única de ver as suas escolhas através de um filtro, podendo até mesmo ocultar ou adicionar aquilo que, do ponto de vista artístico, melhor lhe convém. Alejandro Jodorowsky, o polêmico diretor chileno, fez exatamente isso nos longas A Dança da Realidade, de 2013, e Poesia Sem Fim (Poesia Sin Fin), filme de 2016, mas lançado somente agora no Brasil.
Com uma abordagem semi auto-biográfica e abraçando, como sempre fez, o onirismo e a fantasia, o cineasta, no primeiro dos cinco filmes que pretende fazer sobre a própria vida, narrava a viagem feita pela sua família da cidade natal até Santiago. Já na obra atual, a segunda da pentalogia, ele começa do ponto onde a última parou e mostra, inicialmente, a sua adolescência (nessa parte da narrativa, quem o interpreta é o ator Jeremias Herskovits), quando lutava contra a tirania do pai (Brontis Jodorowsky) para se tornar um poeta. Posteriormente, no momento em que o personagem já está adulto (nessa fase, o intérprete é Adan Jodorowsky, filho do diretor), o filme acompanha as suas idas e vindas em busca da liberdade individual.
Uma espécie de Amarcord jodorowskiano,, assim como A Dança da Realidade, Poesia Sem Fim é um dos filmes mais acessíveis do diretor. A narrativa é linear, há uma trama a ser acompanhada, os símbolos não surgem em profusão e existe uma mágica irresistível rodeando a jornada do protagonista, esta última sendo obtida, majoritariamente, graças às fachadas construídas a partir de panos, aos constantes flertes entre os acordes grandiloquentes e harmoniosos arranjados por Jonathan Handelsman e o tom operístico adotado por Jodorowsky, que, juntamente com as cores saturadas do design de produção e figurino (perfeitamente ressaltadas pela fotografia viva e a câmera digital do genial Christopher Doyle), transformam uma trajetória individual em um conto de apelo universal.
Além disso, cenas memoráveis, como o primeiro momento que se passa no bar boêmio, casa de poetas e onde estes, velhos e taciturnos, são confrontados pelo jeito e corres berrantes de uma poetisa, ou um dos instantes finais, no qual o protagonista é um raio de luz numa multidão de pessoas vestidas como a Morte e Satanás, além, é claro, de diálogos inspirados, como aquele que contém a inesquecível fala “este bêbado, transformado em profeta pelo vinho”, são essenciais para gerar a sensação de que estamos acompanhando um obra de arte genuína e única. Infelizmente, para aqueles que não conseguem se convencer da genialidade de Alejandro Jodorowsky – como este que vos escreve -, Poesia Sem Fim não será o filme responsável pela sua mudança de opinião.
Opressores e oprimidos
Pois, assim como a maioria dos filmes do diretor, o seu novo longa também está carregado de simbolismos óbvios (há algo mais gritante do que indicar o autoritarismo de Jaime, o pai do protagonista, colocando, na frente da mercearia da qual é dono, um personagem vestido de Hitler e outro com o símbolo da suástica preso no braço? O mesmo vale para a sequência que mostra a recepção popular à chegada de Carlos Ibãnez del Campo, na qual o fascismo do presidente é indicado por símbolos nazistas) e, pior do que isso, uma visão que insiste em enxergar o Mundo de maneira polarizada, como se existissem somente opressores e oprimidos .
Nas suas histórias, não há drama nem conflitos, e isso acontece, única e exclusivamente, porque ele vê em tudo e em todos nada mais do que barreiras propensas a impedir que sujeitos raros – como ele mesmo, o que é um egocentrismo deplorável – vivam livremente. A esses “antagonistas”, que podem ser tanto pessoas quanto instituições, não é dado o benefício da dúvida, muito menos uma complexidade interior. Aos olhos do diretor, a vida se resume a heróis e vilões. Quem dera as coisas pudessem ser resumidas, assim, tão facilmente! Não é à toa que os dois melhores momentos do filme são justamente as sequências em que o estilo de vida livre do protagonista acaba resultando numa traição – portanto, num conflito – e a final, na qual Jaime mostra outra faceta de sua personalidade.
Aliás, sobre essa cena final, ironicamente, ela gera um misto de deleite e tristeza. O primeiro sentimento acontece porque o diálogo entre pai e filho é soberbo, e a partida deste, com o adeus dos bonecos de papel e num barco roxo (a cor do falecimento) cujos passageiros são somente ele e a Morte é perfeito. Já o segundo surge em razão de um lamento: por que Jodorowsky não investiu mais em conflito nos seus filmes? No seu caso, nem a esperança resta, afinal, ele já tem 88 anos e não parece nem um pouco convencido a mudar o seu estilo ou a forma como enxerga as coisas. Dessa maneira, o que há de fazer a não ser prantear pela sua teimosia? Por causa dela, quase toda uma carreira foi desperdiçada, já que, diferentemente da poesia, a vida, infelizmente, tem fim.
(Se você é fã de Alejandro Jodorowsky, não deixe de conferir os dois Formiga Na Tela sobre Duna e o quadrinho Bórgia, além das resenhas de Os Olhos do Gato e Garras de Anjo.)