Faltam apenas dois filmes para que Quentin Tarantino encerre sua carreira de cineasta… Pelo menos é o que ele mesmo tem dito e o repetiu em sua passagem pelo Brasil. Tal qual Fellini em seu 8 1/2, o diretor faz questão de nos mostrar, no título da película, que este é seu oitavo filme, e – claro – faz referência ao número de personagens detestáveis do mesmo, embora essa afirmação possa ser contestada ao término da projeção.
A trama de Os Oito Odiados (The Hateful Eight) acompanha o caçador de recompensas veterano John Ruth, levando uma fora-da-lei capturada, Daisy Domergue, até uma cidade próxima para buscar seu prêmio. No caminho, o “carrasco”, como é chamado, depara-se com o Major Marquis Warren e, mais à frente, com Chris Mannix, suposto novo xerife da cidade para onde Ruth se dirigia. Coincidentemente, além do destino em comum, esses dois últimos tiveram problemas com seus cavalos e estão a pé, mas convencem o desconfiado Ruth a dar-lhes carona em sua diligência. Devido a uma nevasca, são obrigados a fazer uma parada no estabelecimento de Minnie, que funciona como abrigo para quem viaja pelo território. Lá encontram outros quatro misteriosos personagens: Joe Gage, Oswaldo Mobray, General Smithers e Bob. Este último alegadamente encarregado do local enquanto os donos estão ausentes, criando uma situação em que ninguém sabe qual deles diz a verdade. Estabelecendo esse suspense, o filme chega a lembrar um exemplar de um gênero bem diferente dele: O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter.
Talvez o mais prolixo desta filmografia, a obra tem seu ponto forte no roteiro. Exímio escritor de diálogos, o diretor não poupa esforços e nos traz sequencias absolutamente fantásticas, onde todos os personagens interagem entre si, inundando a tela com referências, inclusive aos famosos cigarros Red Apple (elemento recorrente no universo criado pelo diretor). Evidente que temas como racismo e sexismo também são abordados de forma veemente. O texto merece elogios por não deixar pontas soltas, além de tocar novamente em um contexto histórico desagradável para os EUA, evocando todo esse panorama de guerra e segregação com seu estilo peculiar de criar personagens.
No campo das atuações, Jenifer Jason Leigh dá um show com sua Daisy, fazendo por merecer uma indicação ao Oscar. Repleta de sarcasmo e acidez, a personagem consegue fazer com que o espectador a odeie por seus crimes, mas também simpatizar com ela em seus momentos de alívio cômico. Com ela junto a Samuel L. Jackson (Major Warren), Kurt Russsel (John Ruth) e Walton Goggins (Chris Mannix) fazendo bonito na linha de frente do elenco, Tim Roth, Michael Madsen, Demian Bichir e Bruce Dern, entre outros com menos tempo em cena, não ficam muito atrás, mostrando mais uma vez a habilidade de Tarantino ao dirigir atores, conseguindo sempre extrair o máximo (ou bem perto disso) de quem está com ele. O carisma e a química entre os tipos que desfilam pela tela, mais a ironia do roteiro, criam situações hilárias que aliviam o peso de uma duração de cerca de três horas.
No lado técnico da produção, existe a curiosidade em torno da opção de filma-lo no formato incomum – e grandiloquente – de Super 70mm. Se poucos cinemas nos EUA tem o equipamento necessário e o pessoal treinado para esse tipo de projeção, em nosso país nem é necessário comentar, o que traz a triste conclusão de que uma parcela ínfima do público tem acesso à experiência completa concebida pelo diretor. Exigências de diva à parte, para quem não faz ideia do que isso significa, é só conferir a imagem abaixo para perceber a diferença na proporção da projeção:
O formato existe desde o fim da década de 1950, evidentemente destinado a produções com um investimento maciço em locações ou cenários. Como Os Oito Odiados situa a maior parte de sua narrativa em um espaço fechado, a loja de Minnie durante a nevasca, qual o sentido desta escolha? Seria compreensível no anterior Django Livre, mas só poderíamos conferir a validade disso assistindo-o no formato correto, então essa é uma pergunta oportuna que – os que tiveram acesso ao microfone – esqueceram de fazer durante a coletiva de imprensa.
A fotografia competente de Robert Richardson, habitual desde Kill Bill vol. 1, cumpre seu papel dentro da sutileza exigida na grande maioria do filme. Do simples branco difuso refletido pela neve no começo – lembrando O Vingador Silencioso, de Sergio Corbucci – até algo mais elaborado, como a mudança gradual de iluminação dentro do espaço fechado enquanto escurece do lado de fora, tudo é uma preparação para o momento em que o sangue jorra, ganhando o destaque necessário no meio dos tons de marrom predominantes.
“Eu queria uma música que sugerisse a violência que estava por vir”, foram as palavras do cineasta sobre a trilha sonora de Ennio Morricone, e o compositor de tantas trilhas marcantes (a maioria dos filmes de Sergio Leone e Os intocáveis, de Brian De Palma, para falar o mínimo) acertou mais uma vez. A frase não poderia ser mais precisa para descrever o trabalho de Morricone, criando a expectativa de possíveis novos trabalhos juntos. Fora isso, o ecletismo musical tarantinesco também marca presença, juntando White Stripes e Roy Orbison neste caldeirão.
Os Oito Odiados, porém, não é um filme perfeito. A falecida montadora Sally Menke, colaboradora habitual do diretor até Bastardos Inglórios, faz mais falta aqui do que fez em Django Livre, onde foi substituída por Fred Raskin, que também está neste último trabalho. Dividido em capitulos (detalhe recorrente em sua carreira) ele perde ritmo por volta do final de seu segundo ato, fazendo com que um desinteresse se insinue. Com a presença de Menke, talvez tivéssemos algo mais enxuto, no nível – ou perto – de obras como Pulp Fiction, por exemplo. Apesar de tudo, Quentin Tarantino chegou a um patamar de excelência em que uma falha como essa não chega a prejudicar a experiencia do espectador de forma brusca. É um detalhe que poderia ser evitado, mas não diminui o impacto da obra.
Saldo bastante positivo no final, ainda que traga um certo desgosto pela aproximação do fim da carreira de um grande diretor!