Os Guardiões reside na rara categoria de filmes tão ruins que são bons
Os Guardiões (Zashchitniki) é horrível. É um imenso saco de estrume na forma de um filme. É uma ofensa à inteligência do espectador e, provavelmente, uma das piores coisas feitas no gênero dos super-heróis em toda a trajetória desses no cinema. E é exatamente por isso que você precisa vê-lo.
É aquele tipo de filme tão fanaticamente ruim que, como se diz no jargão popular, consegue dar a volta e se tornar maravilhosamente bizarro. Não há tempo para pegar desgosto da sua ruindade – ele é tão brutalmente malfeito que o choque passa quase de imediato. Um efeito catártico, quase que como uma droga (o que faz jus ao filme), toma conta, dando início a uma experiência absolutamente sui generis de guilty pleasure.
Uma daquelas raras obras que habitam o tênue limiar entre o completamente estúpido e o absolutamente genial; entre o totalmente desprezível e o maravilhosamente épico. Assistir a Os Guardiões evoca o tipo de experiência somente provocada por outros clássicos incompreendidos no seu próprio tempo, como Vingador Tóxico e Roboman (The Vindicator).
Na trama, uma organização secreta chamada “Patriota” (não ria – você pagou para ver um certo super-soldado cujo uniforme é uma bandeira) desenvolveu um programa de… super-soldados durante a Guerra Fria. O motivo pelo qual eles não foram usados para adquirir vantagem no conflito não é importante. O que é importa é que existem dúzias deles espalhados pela esfera da antiga União Soviética. Cada um cuidando da sua vida, como todo bom russo.
Quando um cientista maluco (claro) chamado August Kuratov (Stanislav Shirin) tenta criar o seu próprio programa de super-humanos, o governo soviético tenta impedi-lo. Ele acaba por destruir as instalações do programa Patriota consigo dentro – mas sobrevive, coberto por substâncias químicas cuidadosamente não especificadas.
O amigo leitor não precisa fazer nenhum esforço mental para saber o que vem depois. É claro que os produtos químicos dão poderes ao cientista maluco – permitindo a ele controlar máquinas e eletricidade – aumentando exponencialmente sua loucura. Ele então, sendo o diligente cientista que é, faz o que manda o Manual Geral do Cientista Insano: cria um exército de clones e máquinas assassinas com designs de pouca funcionalidade, para provar ao mundo quão genial ele é, e conquistá-lo. Esperando o momento certo para atacar, ele volta nos dias atuais.
O governo russo precisa reagir imediatamente. Usar os vastos recursos militares e tecnológicos contemporâneos que a Rússia possui? Claro que não. A melhor solução é convocar soldados super-poderosos fora de ação há duas décadas, para resolver um problema que deveria ser mantido em segredo da maneira mais indiscreta possível – com destruição em escala pública e efeitos colaterais de custos indizíveis.
A tal equipe formada é um meio pastiche, meio releitura dos super-heróis americanos:
- Ler (Sebastien Sisak), que manipula pedras e rochas, um tipo de Magneto piorado que exerce a função de herói relutante e pretenso líder do grupo;
- Khan (Sanzhar Madiyev) é o cara stealth da equipe. Ele deveria ser um especialista em lâminas, artes marciais e espionagem, mas a aura projetada pelo filme só nos permite ver uma espécie de mash-up emo do Príncipe da Pérsia com o Soldado Invernal;
- Xenia (Alina Lanina), uma acrobata, ginasta e artista marcial que pode se transformar em água, com todos os benefícios que você consegue imaginar disso. Ela teria potencial para ser um dos membros mais poderosos da equipe – mas nós estamos falando de um filme de super-herói (terra já fértil para misoginia) russo (uma nação cujo desprezo pelas mulheres, negros e minorias provavelmente está representada no hino nacional). Ou seja, ela é estritamente um atraente bibelô desfilando na tela;
- E, para a pièce de résistance dessa obra prima, nós temos Anton Pampushnyy “interpretando” Ursus, um homem-urso. Porque, claro, um filme de super-heróis russo tinha que ter um homem que vira um urso. Se nós tivéssemos que imaginar um meme para resumir o que é a Rússia, este seria um meio-homem, meio-urso, com uma garrafa de vodka em uma mão, uma metralhadora na outra, usando chapéu caixote, rugindo enquanto cavalga uma bomba atômica sob os céus gelados da Sibéria. Os Guardiões abraça essa verdade absoluta de tal forma que metade desses requisitos são, de fato, cumpridos pelo filme.
Uma possível crítica ao gênero dos super-heróis?
Eu sei o que o amigo leitor irá dizer – que minha crítica é irônica, feita apenas parar cumprir o calendário. Talvez, para o espectador casual, Os Guardiões seja um filme apenas boçal e terrivelmente executado em todos os seus aspectos – o que é uma verdade – mas existe nele uma aura de sinceridade que é típica apenas dos calhordas e cafajestes mais cativantes.
É um filme que não tem medo de abraçar suas totais limitações. Feito com apenas 5 milhões de dólares – uma fração pífia das atuais produções do MCU e do DCEU – Os Guardiões é uma visão resumida do que os super-heróis representam enquanto gênero para público em geral e, ao mesmo tempo e por causa disso, também funciona como uma espécie de auto-crítica do gênero para o cinema.
É um fato, para quem conhece os super-heróis nos quadrinhos, que há muito eles evoluíram para além da sua simplicidade infanto-juvenil inicial. Entretanto, é curioso notar como essa evolução ainda passa batida para o grande público – situação essa que foi bastante agravada pelas investidas recentes da Marvel e da DC no cinema.
Ambas escolheram caminhos que hoje se revelam questionáveis – enquanto a Marvel decidiu transpor o seu universo para as telas de maneira hermética e quase literal, ao custo quase frequente da coerência e da qualidade, a DC fez ainda pior, ao tentar tornar seus heróis símbolos incompreensíveis de algo vazio e enfadonhamente óbvio. No fim, o que resta da maior parte desses universos tão pretensiosos na memória dos espectadores sempre são fragmentos de efeitos especiais nem sempre surpreendentes – muitas vezes, nem mesmo bons – e pessoas com super-poderes saindo no braço.
Os Guardiões, dessa forma, representa essa visão auto-crítica que demonstra como o espectador incauto de fato vê os filmes de super-heróis hoje – produções grandiloquentes que fingem para si mesmas serem grandes coisas com grandes significados, mas no fundo são apenas pancadarias de contornos digitais caríssimos. Salvo raras exceções, o filme – intencionalmente ou não – expressa o que existe de mais raso e mais envolvente com o universo dos super-heróis no cinema.
Os atores estão visivelmente desconfortáveis nos seus papéis, tendo uma consciência aguda e contínua do que estão participando. Sisak, o Magneto das pedras, parece olhar para a câmera incapaz de fugir a realidade da sua roupa de borracha, que parece ter sido desenhada por uma criança não muito esperta da quinta série. Vê-lo atuar nos transmite claramente o que se passava na cabeça de atores como Michael Keaton em sua versão do Batman, antes de saber que o filme seria um sucesso.
Seus diálogos em russo – um idioma que já naturalmente transmite todo o calor e carinho típico do povo que habita o deserto polar ártico – são constrangedoramente cativantes, com falas que expressam amor e amizade entre indivíduos homicidas que acabaram de se conhecer e com frequência tentam se matar.
Eu sei que você pensou em Esquadrão Suicida, e é exatamente esse o ponto: Os Guardiões busca no cânone cinematográfico de super-heróis americanos suas maiores inspirações. Comprimindo-as ao ponto de restar apenas o que deveria ser o essencial do gênero, denunciando uma verdade incômoda sobre os encapuzados no cinema: na maior parte do tempo, filmes de super-heróis são imensas bobagens terrivelmente pretensiosas.
E se os filmes de super-herói tivessem buscado inspiração naquilo que existe de melhor nos quadrinhos? Tivessem se inspirado em Alan Moore e Kurt Busiek no lugar de Rob Liefeld e Mark Millar? Seria Os Guardiões um clássico cult, de narrativa arrojada, simbólica e sutil, no lugar de um grotesco festival de pancadaria, efeitos especiais ruins e ursos?
Nunca saberemos. Pois, em toda a glória de sua ruindade, Os Guardiões é de uma objetividade contundente: não promete nada, não entrega nada e, na suspensão do juízo – que é a única coisa possível aqui – ele se estabelece em um rincão da arte habitado apenas pelos mais sinceros, expressando, sem meias palavras, o que todo um gênero no cinema realmente é.
Os Guardiões talvez não sejam os heróis que nós merecemos. Mas são os heróis que nós precisamos.