O Regresso foi comentado no Formiga na Cabine!
Já se foram mais de quarenta anos desde que um jovem cineasta, Peter Bogdanovich, afirmou que todos os grandes filmes já haviam sido feitos, o que continua sendo um evidente exagero, mas compreensível sob um determinado ponto de vista. O cinéfilo ou leitor mais estudioso já está cansado de saber que certos “moldes” de histórias se repetem ao longo da civilização, com variações em maior ou menor grau, o que vai dificultando cada vez mais a vida dos roteiristas. Se da parte de quem escreve existe um esforço considerável para conferir, no máximo, uma roupagem nova à mesma essência, o trabalho dos diretores é tão complicado quanto na construção desta “embalagem”. Então, por qual motivo alguém se arriscaria com um roteiro cuja sinopse revela apenas a mais básica trama de vingança, como milhares de outros westerns?
Hugh Glass é o protagonista de um caso de sobrevivência famoso nos EUA, ocorrido por volta de 1820, história que o cinema já havia contado em Fúria Selvagem (1971), de Richard C. Sarafian, com Richard Harris no papel principal. O fato é retomado agora em O Regresso (The Revenant), dirigido por Alejandro González Iñárritu, co escritor do roteiro com um improvável Mark L. Smith, com créditos anteriores apenas em pequenos filmes de terror. Os dois basearam-se em partes do livro homônimo de Michael Punke, publicado no Brasil pela editora Intrínseca. O título em português, infelizmente, não traz toda a carga dramática do original, mas serve.
Glass, aqui vivido por Leonardo DiCaprio, é um respeitado caçador a serviço de uma expedição de uma companhia de comércio de peles, viajando pela região das Montanhas Rochosas. Após um ataque brutal dos beligerantes índios da tribo Arikara, o conhecimento dele é vital para conduzi-los por terra até o forte mais próximo, mas os riscos ainda são enormes, piorando sua relação com o discordante John Fitzgerald, interpretado por Tom Hardy. Estabelecida essa dinâmica conflituosa, um urso ataca Glass e o deixa à beira da morte. Como carrega-lo se torna impossível em determinado ponto, fica combinado que três membros ficarão com ele até o fim, fazendo um enterro digno em seguida. Ficam Hawk, mestiço da tribo Pawnee e filho de Glass, o novato Bridger e o improvável Fitzgerald, motivado por um bônus oferecido pelo Capitão Henry, líder da expedição.
Encurtando a sinopse para evitar o excesso de revelações, como sua morte parecia certa, ele acaba abandonado após um revés, mas sobrevive contra o que tudo indicava, graças a um forte sentimento de contas a acertar com Fitzgerald. Confirmando o que já foi citado, sim, é uma história de vingança que não vai muito além do que já foi descrito, fora alguns detalhes periféricos destes quatro personagens e uma subtrama envolvendo os Arikaras, e você até já imagina o que acontece no final, sem muitas opções. Então, por que assistir, ainda mais pagando caro no cinema? A resposta para essa pergunta e a do primeiro parágrafo só poderia estar, unicamente, na confiança de Iñárritu e sua equipe em criar algo visualmente bastante diferenciado e envolvente. Conseguiram!
Dando um passo além da excelência visual que conferimos em Birdman, o cineasta mexicano trouxe de volta o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, trabalhando de uma forma que poderia ser o maior tiro no pé da produção. A opção por rodar O Regresso apenas com luz natural, como Kubrick em Barry Lyndon, a princípio, parecia aquele tipo exigência egocêntrica que prejudica todo um projeto, mas a dupla encarou o desafio, entregando um filme que – exceto por UMA cena (Veja AQUI) – utilizou o sol, a lua e o fogo como suas fontes de iluminação. O resultado são imagens belíssimas, além de viscerais e de uma realidade palpável, que encontram seu par perfeito na câmera de Iñárritu, trabalhando com vários planos-sequência para tirar o espectador da simples passividade do voyeur, colocando-o no meio da ação para sentir toda a violência, tensão e angústia que a narrativa carrega, tudo isso sem 3D. Filmado no Canadá e na Argentina, é difícil não pensar nas dificuldades que a equipe enfrentou nestas condições.
O filme também aproveita esse caráter poético e contemplativo das lindas imagens para explorar outro lado, remetendo ao cinema de Terrence Malick, diretor de A Árvore da Vida, que Lubezki também fotografou. Outra referência válida é Nicolas Winding Refn em seu O Guerreiro Silencioso. O espectador partilha das visões de Glass em sua difícil jornada, convidado a interpreta-las junto com ele, porém, não se trata de algo excessivamente truncado na subjetividade, que deixará inúmeras pontas soltas para o público costurar. Mesmo assim, é óbvio que alguns simbolismos não têm respostas fáceis ou diretas, o que nos faz continuar mastigando a obra após seu término, contrastando com a simplicidade de sua história.
Não é apenas na construção do espaço cênico que o diretor merece aplausos, já que o elenco sob sua batuta entrega atuações fantásticas para fazer jus à toda qualidade da imagem. Leonardo DiCaprio encara o maior desafio de sua carreira, passando a maior parte do filme sozinho, mas seu Hugh Glass consegue transmitir ao público sua dor, sua fome e sua raiva através do olhar e de seus gestos. Definitivamente, é um grande momento do ator. Tom Hardy tem a vantagem de ter em seu Fitzgerald um tipo mais verborrágico, apesar de rústico ao extremo, e o inglês entrega mais uma atuação memorável, também ajudado por um roteiro que soube trabalhar as sutilezas de um antagonista que não é simples maldade pura. Domhnall Gleeson (Capitão Andrew Henry), Will Poulter (Bridger) e Forrest Goodluck (Hawk) não decepcionam com suas participações, completando o reduzido grupo principal.
Acertando também no uso pontual da trilha sonora de Ryuichi Sakamoto, mais conhecido no Japão, e do estreante em longas Alva Noto, O Regresso talvez só peque pela motivação e resolução da já citada subtrama dos Arikaras, algo que acaba sendo conveniente demais para o fechamento da história. Mesmo assim, se certas peças na estrutura do texto são questionáveis, ele não deixa a sensação de que faltou algo, fechando seu ciclo de forma adequada. Pela grandiosidade e harmonia de sua execução, isso não basta para tirar uma classificação máxima do conjunto.
Feito para a maior tela de cinema possível, o filme de Alejandro González Iñárritu – e de Emannuel Lubezki, por que não? – é uma realização soberba em termos audiovisuais, lembrando o cinéfilo de todas as possibilidades da sétima arte, assim como os motivos, difíceis de verbalizar, que nos levam a gostar tanto desta mídia. As premiações, além da notória antipatia de seu diretor, são questões insignificantes diante de um produto final como esse.
Como curiosidade, segue o trailer de Fúria Selvagem: