Desde os primórdios do cinema, os vampiros sempre foram alguns dos vilões mais amados pelo público. Desde o primeiro filme terror que sem tem notícia, o francês O Castelo do Demônio (Le Manoir Du Diable, 1896) dirigido por um dos pioneiros da sétima arte, George Méliès, as referências aos monstros sanguessugas são garantia de atenção do público. Também pudera, os vampiros estão presentes em lendas, histórias de terror e na literatura desde a idade média europeia, tornando-se ícones culturais ao lado de lobisomens, bruxas e zumbis, porém talvez alguns degraus acima de seus pares no fascínio do público pelo potencial dramático que carregam. Para adultos, crianças ou adolescentes, românticos, tolos ou assustadores, blockbusters ou semiamadores, não importa. A temática vampiresca já produziu o que de melhor e de pior já surgiu na filmografia mundial.
Da Nova Zelândia chega um obscuro e despretensioso filme de vampiros que vem chamando a atenção dos fãs do assunto, não por ser assustador e incômodo como Deixe Ela Entrar (Låt den rätte komma in, 2008), poético como Entrevista com Vampiro (Interview with the Vampire: The Vampire Chronicles, 1994), ou clássico como Nosferatu (1922), mas justamente por homenagear a todos eles e muitos outros com um gênero que foge ao estilo e geralmente enfurece os fãs mais entusiasmados do terror: a comédia. O mais impressionante de tudo? O resultado é surpreendentemente bom.
O que Fazemos nas Sombras (What We Do In The Shadows, 2014) é um filme de baixo orçamento dirigido por Jemaine Clement e Taika Waititi, que também assinam o roteiro e protagonizam o longa. Desde estreia mundial há mais de dois anos, o filme rodou o mundo em festivais temáticos, situação pela qual já foi exibido no Brasil desde então. Chega agora oficialmente ao país diretamente em home vídeo, abrindo mão de alcançar uma plateia muito maior. Mas este talvez seja um dos trunfos da produção neozelandesa. Não é um filme de massa, justamente porque é, simultaneamente, uma crítica e uma homenagem ao que os vampiros foram transformados pela cultura pop, precisando ser garimpado para que se perceba a verdadeira joia que espectador tem diante dos olhos.
Sob o formato de falso documentário, um mockumentary, o filme mostra o cotidiano de um pequeno grupo de vampiros que divide uma casa em Wellington, capital e principal metrópole da Nova Zelândia. Uma equipe de TV filma o dia a dia da trupe nos meses que antecedem ao maior evento festivo da comunidade de monstros da Oceania: o Grande Baile de Máscaras Profano. A princípio, o personagem central é Viago (Taika Waititi), um vampiro de 379 anos que apresenta os colegas Vladislav (Jemaine Clement), Deacon (Jonathan Brugh) e Petyr (Ben Franshaw) ao público. Os quatro tentam mostrar que ser vampiro não é tão diferente de ser humano, tendo que enfrentar problemas cotidianos típicos como tirar manchas de sangue das roupas, evitar a sujeira no carpete, lavar a louça, livrar-se de corpos, etc. As coisas mudam quanto entra no grupo o jovem vampiro novato Nick (Cori Conzalez-Macuer) que vai morar junto com eles e leva a tiracolo o amigo humano Stu (Stu Rutherford), que apesar de apetitoso é um cara legal demais para ser morto.
Com narrativa leve e direta, o filme usa uma comédia sutil, mas certeira, brincando com todos os clichês sobre vampiros que cinema já utilizou, porém sem estupidifica-los. Como um vaidoso vampiro do século XVII pode se vestir para sair e conquistar belas garotas virgens para morder o pescoço se não consegue se olhar no espelho? Como entrar nas baladas repleta possíveis vítimas e de quebra se divertir, se sempre precisam ser convidados para entrar? Embora sem causar grandes gargalhadas – em nenhum momento há essa intenção – a produção causa risos sinceros e um entretenimento de primeira linha com as ótimas sacadas do roteiro.
O que Fazemos nas Sombras é uma homenagem aos grandes ícones da filmografia vampiresca em diferentes gêneros. Impossível não associar Viago com dândi romântico Louis de Entrevista com o Vampiro. Petyr é o próprio Nosferatu. Dois grandes Dráculas estão representados nas peles de Vladislav e Deacon, que remetem aos personagens de Gary Oldman, em Drácula de Bram Stocker (1992), e de Bela Lugosi, em Drácula (1931). Até o antivampiro Edward, de Crepúsculo (2008), está homenageado pelo abobalhado Nick. Ao trabalhar suas referências, o filme ganha força por não se concentrar em utilizá-las como força motriz da narrativa, mas apenas por deixa-las subentendidas como indicativos culturais. A obra tem identidade própria e o cruzamento das outras produções o ajuda a se tornar uma peça única e interessante.
O elenco está muito à vontade na produção, convidando a plateia a se divertir com eles. Os personagens são carismáticos e envolventes. Como poderia se esperar do formato adotado, o roteiro não se resume a criar uma série de situações cômicas forçadas que não contribuem nada com nada. Muito ao contrário, a história é linear e interessante, com pinceladas de drama e reflexões sobre o isolamento social do ‘diferente’, que cativam o espectador que se identifica com as sensações mostradas na tela. O roteiro deixa alguns buracos na história pela dificuldade de se manter o estilo documentário em todos os momentos, além de dar uma declinada considerável no último ato, mas nada que comprometa gravemente o resultado final.
A fotografia e a direção de arte são um interesse à parte, mesclando referências das diferentes épocas de nascimento dos vampiros com a contemporaneidade do século XXI. O contraste entre a escuridão do mundo dos vampiros com a luminosidade de uma grande metrópole é fundamental para reforçar a psicologia dos personagens. Os figurinos são propositadamente caricatos para marcar ainda mais o isolamento dos vampiros que tentam ser fortes, mas se mostram cada vez mais frágeis frente aos percalços da existência eterna.
O que Fazemos nas Sombras é um excelente exercício de criatividade, algo raro de se encontrar nas produções de mercado. É um típico caso de filme que você busca assistir apenas como passatempo, sem esperar grande coisa e se depara com uma grata surpresa. Usa com inteligência o humor e a comédia para homenagear o terror. A única tristeza que este filme traz – tristeza essa compartilhada por muitos colegas críticos – é que ele continuará ainda por muito tempo nas sombras, sem o reconhecimento e o acesso do público que mereceria.