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O Que Está Por Vir – O poder da filosofia!

O Que Está Por Vir

O Que Está Por Vir

Nos dias de hoje, em qualquer discussão informal ou acadêmica, é muito comum ouvir comentários sobre a inutilidade da filosofia. Dizem que ela nada mais é do que considerações abstratas que pouco ou nada tem a ver com a realidade concreta. Mas nem sempre foi assim. Em sua origem, na Antiguidade Clássica, até o início da Idade Moderna, a filosofia sempre foi vista como a melhor ferramenta para auxiliar o Homem nos problemas do dia a dia. Foi apenas a partir do século XV, quando a intelectualidade européia começou a se desvencilhar da Igreja Católica e projetar novas interpretações acerca da realidade, que o discurso filosófico passou a se fragmentar e se tornar hermético, cada vez mais distante daquilo que chamamos de “vida”. O Que Está Por Vir (L’avenir), o quinto longa metragem da talentosa Mia Hansen-Love, está aqui para contrariar a tendência moderna e recuperar um pouco do sentimento antigo, já que, graças à filosofia, sua protagonista consegue enfrentar com força todas as provações que lhe abatem.

No filme, acompanhamos o cotidiano de Nathalie Chazeaux (Isabelle Huppert). Professora de filosofia em uma escola de Paris, ela vive uma vida perfeita. Casada, mãe de dois filhos e apaixonada pelo trabalho, ela divide o tempo entre a família, os alunos e a mãe doente. No entanto, de repente, a sua vida fica de cabeça para baixo: o marido (André Marcon) a informa que está tendo um caso com uma mulher mais nova, boa parte dos seus alunos deixam de frequentar as aulas para participar de manifestações políticas, a mãe (Edith Scob) falece e a editora encarregada de relançar alguns dos seus livros começa a impor decisões que não a agradam. Chocada com essas mudanças repentinas, ela terá de encontrar forças dentro dela e na própria formação intelectual para tentar sair ilesa desse turbilhão de problemas.

Em O Que Está Por Vir, há uma incompatibilidade entre as crenças de alguns personagens e as suas verdadeiras ações. Heinz, o marido de Nathalie, afirma que o único princípio universal em que acredita é o comportamento moral do indivíduo, mas parece não ter pensado duas vezes antes de trair a esposa; e Fabien (Roman Kolinka), um ex-aluno de Nathalie, diz ser um anarquista mas, embora viva numa colônia hippie com outras pessoas, tudo o que faz é refletir sobre a revolução social que, se depender das suas próprias ações, nunca acontecerá. Já outros personagens parecem não ter consciência do momento atual que vivem: os alunos de Nathalie, todos adolescentes, protestam contra projetos de lei contrários à Previdência Social; e Ivette Lavastre, a mãe da protagonista, tem dificuldades em lidar com a velhice, já que coloca por todo o apartamento fotos da época em que era jovem, bela e trabalhava para diferentes agências de modelo.

O Que Está Por Vir

Em parte devido ao poder de sua formação filosófica, a única personagem que consegue escapar dessa espiral de hipocrisia e ausência de auto consciência é Nathalie. Apesar de ter sido uma idealista política na adolescência, as exigências práticas da vida adulta logo lhe fizeram enxergar o mundo de uma maneira mais real e concreta. Nathalie sabe que as grandes transformações não acontecem exteriormente através dum coletivo de pessoas, mas sim dentro de cada indivíduo. Isso fica claro em dois momentos: na cena em que puxa uma de suas alunas de um grupo de manifestantes e a coloca na sala para assistir à aula, e na conversa que tem com Fabien, na qual, após este dizer que ela se ressentia do tipo de revolução que ele e os amigos pretendiam realizar, ela responde dizendo que, com o tempo, virão outras preocupações e objetivos na vida. Nathalie também tem consciência das consequências que acompanham a meia idade: ciente de que já não é tão atraente quanto costumava ser, embora não aceite, ela compreende os motivos que levaram o marido à infidelidade, e, mesmo percebendo a admiração de Fabien, em nenhum momento se aproveita disso, pois ela sabe que um relacionamento de uma mulher de 60 e poucos anos com um jovem de 20 não só seria ridículo como totalmente egoísta.

Esse conhecimento profundo do próprio “eu” e das circunstâncias que a rodeiam dá a Nathalie uma força quase sobrenatural para enfrentar de peito aberto os inúmeros problemas que a acometem. Em vez de ficar com o ego ferido e a auto estima baixa em razão da traição do marido, ela procura compreender quais foram os elementos geradores da infidelidade; no momento em que descobre que a editora não irá mais publicar alguns de seus livros, ao invés de se ver como vítima e fazer um escândalo, ela se mostra pronta para encontrar uma outra que aceite publicá-los; e vendo a felicidade momentânea compartilhada pelos moradores da colônia hippie, ela sabe que aquele prazer coletivo não durará muito tempo. Embora chore às vezes (seria inverossímil criar um indivíduo que se não se abate com nada), ela sempre está decidida a seguir em frente.

Essa força e vida interior da personagem são muito bem simbolizadas pela presença do gato que Nathalie herda da mãe. Além de ser preto (símbolo de azar e morte), ele se chama Pandora, o que é uma clara referência ao mito grego da Caixa de Pandora, o que, por sua vez, faz eco ao desmoronamento da vida da protagonista. Em alguns momentos, o gato está preso na jaula, em outros, ele foge e Nathalie fica dias sem vê-lo. Claramente, o aprisionamento de Pandora é um símbolo do domínio intelectual e emocional que a protagonista tem das situações, e as eventuais fugas simbolizam os instantes em que, mesmo com toda a força interior que exibe, ela não consegue segurar o choro e a tristeza.

Esse talento de Mia Hansen-Love para criar simbolismos também está presente na estrutura circular (morte/renascimento) da trama. O filme começa com uma visita de Nathalie e da família ao túmulo do intelectual francês e cristão François-René de Chateaubriand. No momento em que a protagonista está de frente para a cruz fincada na cova do filósofo, aparece o título do filme, indicando que “o que está por vir” é sempre a morte. Afinal, este filme não é apenas sobre o poder da filosofia, mas é também sobre a mortalidade. E, como dizia Michel de Montaigne: “filosofar é aprender a morrer”. Depois do desabamento do mundo de Nathalie, que pode ser visto como uma morte figurada, a formação e maturidade intelectual e emocional da protagonista dão a força que ela precisa para enfrentar tudo isso e, de certa forma, renascer. A cena final de O Que Está Por Vir mostra a protagonista segurando a neta em pleno Natal, o que é tanto uma rima temática com a cruz e o cristianismo de Chateaubriand no começo do filme quanto um símbolo poderosíssimo do renascimento de Nathalie. “No meu princípio está o meu fim. E no meu fim está o meu princípio”, já diziam os versos de T. S. Eliot.

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E se no roteiro Mia Hansen-Love realiza esse trabalho magistral, na direção, além de extrair mais uma atuação soberba de Isabelle Huppert, a diretora estabelece uma lógica visual naturalista no estilo dos filmes dos irmãos Dardenne que, diferentemente de inúmeras obras atuais, que adotam esse estilo mais natural, é totalmente justificada pelo ritmo similar ao do cotidiano construído por Mia Hansen-Love e pela opção do roteiro de transpor para as telas uma história simples, doce e parecida com a de milhões de pessoas ao redor do globo.

Belo, sutil e comovente, este é um filme, que na sua total ausência de pretensões intelectuais, consegue realizar algo que muitos livros tentaram mas falharam miseravelmente: mostrar ao público que a filosofia não é inatingível, ou algo cujo conteúdo hermético só pode ser discutido por anciões e acadêmicos que foram apresentados aos seus mistérios quase intransponíveis. Desde a sua origem, ela sempre foi pensada como uma ferramenta que caminha lado a lado com a vida e que ajuda o Homem a compreender e a lidar com a realidade que o circunda. Se nos últimos cinco séculos a humanidade não quis enxergar a filosofia dessa maneira, ainda não é tarde para recuperá-la. O Que Está Por Vir está aí para mostrar exatamente isso. E torçamos para que o elemento futuro indicado no título do filme seja justamente a recolocação da filosofia como uma ferramenta para a vida, e não como uma mera matéria a ser discutida inocuamente em salas de aula.

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