O Pacto de Adriana revela o horror ao escavar o passado familiar
Lissette Orozco tinha 19 anos e estudava cinema quando, em 2007, foi com a família buscar sua tia Chany no aeroporto de Santiago do Chile. As visitas da tia, que morava na Austrália, eram sempre esperadas com entusiasmo e buscá-la no aeroporto já se tornara um ritual. Lissette ansiava pelos presentes, pelas histórias divertidas e pela companhia da mulher que mais admirava até então. Naquele ano, porém, as coisas foram diferentes.
Adriana Rivas, a tia Chany, fora presa ao desembarcar no país. Era acusada de ter feito parte da Direção Nacional de Inteligência (DINA), a polícia secreta da ditadura Pinochet que sequestrou, torturou e assassinou mais de 3 mil pessoas.
Foi do choque diante das acusações que caiam sobre sua tia querida que a estudante de cinema teve o instinto de pegar uma câmera e iniciar sua própria investigação. O resultado é o documentário O Pacto de Adriana (El Pacto de Adriana).
São conversas entre Lissette e a tia, presenciais ou por Skype, entrevistas com a mãe, irmã de Adriana, e com outras pessoas que pudessem esclarecer quem, de verdade, é tia Chany. A diretora admite que iniciou o projeto como tentativa de confirmar a inocência da tia, mas ao longo do caminho isso foi mudando.
Crueza e honestidade
Na forma e nos registros, O Pacto de Adriana traz crueza e honestidade. Por isso, talvez, haja alguns ruídos na estrutura, onde se nota, especialmente na montagem, alguma dificuldade em construir uma narrativa mais sólida, com um arco mais claro. Essa é a crueza, que, naturalmente, pode ser atribuída à inexperiência da diretora. Isso, porém, não é exatamente ruim. Pois dessa crueza brota uma honestidade rara na busca de uma verdade que pode ser muito dolorosa para a autora e muito reveladora para o público.
Não deixa de ser fascinante ver a coragem e a fibra moral da diretora em tatear pelo labirinto de “verdades” com que precisa lidar. Isso vai desde a negação incisiva da tia, que diz nunca ter participado da violência, passa pelos indícios que apontam para o oposto, colocando Adriana Rivas como uma das mais violentas torturadoras do regime, e não escapa, por fim, dos sentimentos da diretora, seus afetos em relação à tia, e também os sentimentos desconcertados da família.
Assim, uma certa precariedade na forma e nas imagens se perdoam em virtude da complexidade emotiva que o filme carrega. E, sobretudo, por sua importância em trazer luz a personagens obscuros da terrível ditadura Pinochet. O pacto do qual fala o título é o de silêncio entre quem, em qualquer atividade criminosa – mesmo as de Estado –, comete atrocidades. Por isso, todos sempre negam.
Do ponto de vida da verdade básica que se busca (se Adriana seria ou não o monstro que a acusam de ser), o documentário desenvolve essa personagem com um olhar franco. Mais de uma vez, deixa o registro dizer por si só e vemos Adriana cair em pequenas contradições, apelar ao sentimentalismo e se decepcionar com os rumos da investigação da sobrinha. Afinal, só aceitou participar porque acreditava que seria um instrumento a mais para provar sua inocência e não é o que acontece.
Mesmo com problemas, O Pacto de Adriana exibe riqueza de sentidos. Às vezes, mais do que uma composição factual, caminha por um sentimento de memória, dor, reparação e espanto. Não apenas de Lissette, mas do país. Intercala momentos comoventes – como uma cerimônia de aniversário do golpe onde pessoas se reúnem em uma praça para ouvir a transmissão radiofônica da época, narrando o bombardeio ao palácio do governo onde estava o presidente democraticamente eleito Salvador Allende, que acabaria morto – com momentos estarrecedores, como as manifestações de apoio ao golpe que sobrevivem até hoje.
Monstros não existem
Quando o filme A Queda! As Últimas Horas de Hitler, de Oliver Hirschbiegel (de 13 Minutos) foi lançado em 2004, entre as críticas que recebeu estava a de humanizar a figura de Hitler. Ao que na época alguém lembrou que não há nada de errado nisso, pois é preciso sempre lembrar que todo mal é humano. Ou seja, todas as atrocidades da história da humanidade foram cometidas por seres humanos. Monstros não existem. Os monstros somos nós mesmos.
Por isso, em última instância, O Pacto de Adriana revela com um viés íntimo esta verdade. Tendemos a pensar sempre em torturadores como monstros terríveis, pessoas que imediatamente reconheceríamos como tais. O difícil de aceitar é que esses monstros costumam ser tão adoráveis quanto uma tia Chany.
Do mais pessoal para o histórico, o tatear desse documentário revela sobretudo a disposição de Lissette em confrontar o que ama para encontrar a verdade. Mais do que atestar ou não a culpa de Adriana Rivas – que segue vivendo na Austrália – O Pacto de Adriana traz um processo de choque da descoberta, da consciência do horror. E esse choque nunca vem sem a dor que, aqui, a diretora encara com a bravura de um caráter sólido.
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