Filho de Saul (Saul Fia) é um modesto filme húngaro que encantou plateias em festivais ao redor do mundo e conquistou títulos importantes, como o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, o que faz dele o favorito para o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira deste ano. O frio, a solidão e a sobrevivência são palavras-chave em sua construção, nos levando a fazer uma incômoda viagem ao encontro de uma pergunta que tentamos ignorar a cada novo dia, mas que está lá, mesmo que impronunciada: o que nos faz querer viver?
O horror da Segunda Guerra Mundial mudou os valores do mundo sobre a existência humana, com o próprio termo humanidade perdendo a essência básica. Filmes sobre este momento sombrio da história são perturbadores, independente da crueza com que se tente encarar o tema. De A Vida é Bela a Lista de Schindler, sabemos que, aos créditos finais, nossa visão de mundo estará mudada por alguns momentos, o que não é diferente para esta pérola do leste-europeu. O Filho de Saul não é um filme para incautos ou inexperientes. Ele exige preparação intelectual e emotiva para um drama forte, curto e direto. Não perde tempo em explicações ou contextualizações históricas, com exceção de uma única informação, logo na abertura, na forma de uma dura definição etimológica, que serve apenas para mostrar a horrível realidade do personagem principal. Saul Ausländer (Géza Röhrig) é um judeu forçado a trabalhar em um campo de concentração, ajudando na retirada dos corpos dos executados nas câmaras de gás. Em troca, ganharia alguns meses a mais de vida.
Um dia, durante o trabalho com os corpos de um grupo de pessoas que ajudou a orientar na entrada da cabine de execução, em uma das muitas cena extremamente aflitivas do longa, Saul encontra um menino que extraordinariamente sobrevivera ao extermínio por gás, causando surpresa a todos. A sobrevida do garoto, no entanto, dura pouco, sendo executado logo em seguida pelos guardas do campo. O acontecimento causa profundo abalo em Saul, que passa obsessivamente a querer promover um enterro judaico digno para a criança. Mas como resgatar, preservar e tratar um corpo em meio a tantos outros naquele ambiente terrível? Como oferecer uma cerimônia religiosa na infernal brutalidade em que se encontra? Como incutir valores da vida em momentos em que apenas a morte parece vencer? Cada dificuldade faz apenas estimular Saul em sua busca absurda aos olhos alheios.
O diretor estreante László Nemes, que também assina o roteiro ao lado de Clara Royer, optou por usar todos os recursos dramáticos disponíveis para transmitir ao espectador a angústia do protagonista. A câmera acompanha cada passo de Saul, praticamente colocada nas costas ou ombros, alternando para closes que compartilham o desespero do personagem com a plateia. O resultado é praticamente um filme em primeira pessoa, em que assumimos a posição do protagonista, sentindo toda a perturbação que lhe assola a alma. Mesmo sem saber o porquê da obsessão de Saul em enterrar o garoto, algo que pode abreviar ainda mais sua vida, torcemos por ele. Afinal, seria mesmo o anônimo menino seu filho, como passa a declarar após enfrentar muitas dificuldades para atingir o objetivo, ou tudo não passa de uma tentativa de dar sentido para aquela vida bestial? As duas coisas? Ou não seria nenhuma delas? Talvez nem mesmo Saul saberia responder. A conclusão é: se viver é um horror sem limites, então busquemos a libertação transcendental pela morte.
O roteiro foi cuidadosamente lapidado para reforçar cada sensação vivenciada. A história do filme se passa em pouco mais de 24 horas, mas a forma de direção adotada faz parecer que se trata apenas de alguns poucos longos planos-sequência cuidadosamente planejados. A câmera, estática nos momentos de falsa calmaria, entra em turbulência frenética nos (muitos) momento de caos. A situação pode dificultar a interpretação dos acontecimentos em cena, mas não se preocupe, pois a maior parte deles deve ser apenas sentido, já que jamais serão definitivamente entendidos. A fotografia de Mátyás Erdély nos faz sentir o frio sufocante do ambiente hostil, mas também o calor dos momentos mais tumultuados, porém sempre fechada, claustrofóbica e sem qualquer indicio de refresco ou liberdade.
O grande destaque de dramaticidade, no entanto, está com o ator Géza Röhrig, um monumento em cena, que através de interpretação contida, sem qualquer resquício de exagero, consegue transmitir toda angústia e a mescla de resignação e determinação que toma conta de Saul. Com um personagem de pouquíssimas palavras, Géza joga para o olhar a responsabilidade de enviar toda a mensagem essencial de que o público necessita.
O Filho de Saul é um belíssimo filme, não apenas por causa das qualidades técnicas. É uma obra poética que nos faz refletir sobre a tragédia humana, sobre o que realmente nos move quando o caos reina, sendo este caos o nosso próprio espírito. O valor da vida está na brevidade e o da morte na sua ausência. Talvez você saia do cinema sem muitas respostas, mas sairá com sensação de que ainda há algo de puro na desgraça que nos tornamos.