O Destino De Uma Nação: A construção de um ícone
Como se aborda, no cinema, a vida de um sujeito cujas ações e personalidade transformaram-no em uma figura icônica? As armadilhas que rodeiam essa dúvida aparecem cada vez que um diretor ou roteirista se põe a pensar no assunto. Geralmente, filmes dessa natureza tendem a caminhar lado a lado com a glorificação histórica. No entanto, em O Destino De Uma Nação (Darkest Hour), Joe Wright (de Peter Pan) faz algo diferente e, ao optar pela via da humanização, oferece ao espectador a chance de descobrir um pouco mais sobre a personalidade de Winston Churchill.
É verdade que esse tipo de abordagem não é estranha às cinebiografias ou aos filmes que fazem um recorte temporal específico. Aliás, se lembrarmos dos longas que mostram as vidas de artistas ou celebridades, veremos que o sucesso profissional é comumente contrastado com os defeitos comportamentais. Por outro lado, ao longo dos milênios, poucas pessoas foram capazes de mudar positivamente a ordem histórica. Sendo assim, no caso de Churchill, surge a seguinte pergunta: há características que são completa ou parcialmente contrárias às que foram responsáveis pela salvação direta e indireta de um número incontável de pessoas?
Como a resposta a essa pergunta é negativa, se torna vital dizer que a humanização proposta por Wright não é a mesma coisa que apontar defeitos, julgar mesquinharias ou rebaixar aquilo que existe de mais elevado (em épocas cínicas como a nossa, na qual o heroísmo e a magnitude de caráter são vistos com desconfiança, “humanizar” se tornou algo próximo da aviltação). Na verdade, o que vemos em O Destino De Uma Nação são características pessoais que mostram o homem por trás do ícone, aspectos talvez desconhecidos de uma figura cujos atos foram essenciais no desenrolar da história.
Aliás, do ponto de vista dramático, são muitos os elementos que compõem o Churchill de Wright. Há, inclusive, instantes em que o filme e a construção do protagonista flertam indevidamente com a caricatura e apostam em exageros pouco recompensadores (isso acontece especialmente nas cenas dedicadas ao lado mais expansivo do personagem). Entretanto, como a história gira em torno das inseguranças de Churchill e do embate travado entre ele e os outros membros do Parlamento, tanto a narrativa quanto a mise-en-scène foram concebidas para destacar as diferentes posições de poder ocupadas por alguns personagens e a situação crítica em que todos se encontravam no momento.
Uma cena que exemplifica perfeitamente essas distinções sociais é aquela em que Churchill se encontra pela primeira vez com o Rei George VI (Ben Mendelsohn, visto recentemente em Una e Rogue One: Uma História Star Wars). Toda a hierarquia de poder que existe entre os dois personagens é estabelecida pela posição dos atores e pelos movimentos de câmera. Desde o fato de Wright ressaltar a longa caminhada de Churchill em direção ao encontro até o travelling que ilustra com exatidão quem estava abaixo na estrutura política, todos os elementos dispostos em cena pelo cineasta respeitam a lógica interna desse confronto silencioso.
Já no que diz respeito ao cenário desolador da Segunda Guerra Mundial e à pressão sobre-humana que os políticos da época enfrentavam, a fotografia de Bruno Delbonnel reflete essa situação através da predominância de sombras e da exploração riquíssima dos interiores (quase toda a narrativa se passa dentro de ambientes internos, o que ressalta o caráter íntimo do filme). As poucas luzes que invadem os recintos provêm das janelas e de uma iluminação que se encontra sempre comedida, pois, ao mesmo tempo que simboliza a esperança que Churchill carrega próxima ao peito, não é suficientemente forte para dominar os espaços físicos. Além disso, o trabalho de câmera nunca deixa de pontuar a claustrofobia e a solidão que reinam no famoso bunker do personagem.
O ícone em todo o seu esplendor
No entanto, como os livros de história nos mostraram inúmeras vezes, há um momento em que as indecisões e dúvidas internas do protagonista cessam e as suas melhores intenções e instintos se juntam para uma das decisões mais importantes do século XX. Evidentemente, ao acompanhar a narrativa, o espectador já tinha testemunhado a coragem e o ímpeto de Churchill – além, é claro, de ter visto a sua imensa capacidade de articular a língua inglesa, talento retórico que chegou a lhe render a fama de artesão literário -, mas é somente quando define a guerra como a única estratégia possível que ele veste a roupa que a história lhe reservava.
Perceber os elementos cênicos que caracterizam esse período de transição serve para nos revelar a precisa tática de Wright, constituída de um fechamento dos quadros e um preponderamento do protagonista dentro dos primeiros planos e planos americanos (o que só é possível graças à atuação de Gary Oldman, que, debaixo de uma maquiagem impecável, explora de maneira brilhante a bondade no olhar, a vulnerabilidade da voz e a magnitude do corpo). Inclusive, pode-se dizer que O Destino De Uma Nação é um filme de guerra, mas que se passa nos bastidores e na intimidade do protagonista. O ritmo por vezes acelerado é obtido não só através da trilha sonora, como também pelos embates verbais que lembram confrontos bélicos e pelas dúvidas que dilaceram Churchill.
Essa subjetividade, inclusive, também se reflete em outras escolhas do diretor e da equipe, como o plano plongée empregado sobre os campos de batalha, o qual recria a perspectiva de quem olha para a guerra pelos traços de uma cartografia, e o andamento dado pela própria montagem, que faz questão de ressaltar a urgência e o nervosismo que acompanharam a sucessão de derrotas enfrentadas pelo Primeiro Ministro. Finalmente, por motivos que também são técnicos, é necessário mencionar a subversão sutil que desmonta algumas composições anteriores (de maneira correta, toda a coerência presente no supracitado encontro entre Churchill e o Rei George VI é quebrada na interação final entre os dois personagens).
Dessa maneira, apesar de, nos dias de hoje, essas duas realidades pareceram antagônicas (uma vez que boa parte da sensibilidade moderna rejeita os grandes feitos e a magnificência do espírito humano), quando trabalhadas conjuntamente, elas se tornam uma comovente homenagem ao Homem. De fato, entre outras coisas, O Destino De Uma Nação é um hino sobre a capacidade que temos de vencer tudo o que é periférico em nossa personalidade para que, nos momentos cruciais, sejamos capazes de atingir a nossa essência e realizar atos quase divinos. Sim, Churchill era de carne e osso, mas também foi uma dessas figuras maiores que a vida.