Gênesis, capítulo 1, versículo 4: “Deus viu que a luz era boa e separou a luz da escuridão”. O trecho bíblico que abre O Clube (El Club, Chile, 2015) é a síntese do angustiante embate que o espectador irá presenciar pelos 98 minutos seguintes. Um choque violento que surge não da separação entre bom e mau, citada nas primeiras frases da Bíblia, mas justamente na colisão destrutiva entre os dois opostos.
O filme chega ao Brasil após forte aclamação internacional. Dirigido por Pablo Larraín, foi o vencedor do Urso de Prata, Grande Prêmio do Juri da edição 2015 do Festival de Cinema de Berlim. A produção também foi a escolha chilena para disputar uma vaga no Oscar 2016 e tem a presença quase garantida face a boa aceitação por crítica e público.
De fato, existem méritos para a repercussão que tem conquistado. A polêmica do roteiro altamente politizado tem a marca pessoal do diretor, que no trabalho anterior havia exposto toda sua ideologia esquerdista, ao mexer nas feridas na ditadura de Pinochet no denso No (2012), e que mira agora sua artilharia para a Igreja Católica. Em uma pequena cidade litorânea, um grupo de ex-padres é mantido em sigilo, segregado da hierarquia religiosa, após serem acusados dos mais terríveis crimes. Essa seria a separação alegórica entre a luz e a escuridão promovida pela Igreja, que prefere esconder o mal que a constrange em vez de eliminá-lo aos olhos seculares.
Quatro sacerdotes e uma freira dividem os parcos cômodos do imóvel. Eles, afastados após acusações de pedofilia, tráfico de bebês e conivência com crimes da ditadura. Ela, uma espécie de guardiã dos demais, zelando pelo cumprimento de regras rígidas de conduta, mas conivente com lazeres e distrações que amenizam a atmosfera sufocante do local. Após uma tragédia, a Igreja local envia um padre mais jovem e progressista para entender e avaliar as condições daqueles moradores e talvez até fechar a residência. O grupo então se vê forçado a enfrentar os próprios demônios, a conviver com a escuridão pessoal que tanto lutam pra esconder.
Um a um, todos vão sendo obrigados a refletir sobre si mesmos. O que assombra o público é o resultado imediato dessa reflexão. Embora exacerbadamente humanos e de sofrimento evidente, a vergonha é muito mais forte que a culpa. Justificativas para os erros cometidos, às vezes, dão espaço para defesas virulentas das ações pelas quais são criminalizados (até a Bíblia é usada como argumento). Larraín se concentra nos depoimentos de cada personagem para deixar que o espectador construa mentalmente a experiência narrada, da mesma forma que o padre inquisidor, o que proporciona uma potência sensorial ainda maior. A grande força da película está nos diálogos, primorosamente construídos para transmitir o estado de espírito de cada personagem em cena.
O Clube é sobretudo um filme sobre sentimentos, e para passar essa mensagem ao público se carrega de simbologias. Pouco da aura religiosa restou a esses proscritos da Igreja. Não vestem roupas oficiais, bebem, fumam, brigam e jogam. A pouca rotina religiosa é vista quase como obrigação. As apostas em corrida de cães é o grande fio condutor de humanidade que une o grupo, mas logo fragilizado pelo rigidez do recém-chegado interventor. A fotografia é sombria, fria e até irregular, usando do aspecto impressionista de desfocar levemente a cena para causar incômodo ao público. O choque entre luz e escuridão é perene. Repare no contraste entre a luminosidade do mundo exterior visto pela janela e a quase penumbra no interior das paredes da casa, sombras essas que substituem a luz quando os atormentados moradores saem à praia.
Além do cuidadoso trabalho de direção, o sucesso aqui se deve ao primoroso elenco. Pouco conhecidos no Brasil, mas respeitados internacionalmente, boa parte dele já esteve presente em outros trabalhos de Larraín, caso de Alfredo Castro, Roberto Farias, Alejandro Goic e Antonia Zegers, que também se destacaram em maior ou menor grau em No, indicado ao Oscar de filme de língua estrangeiro em 2012.
Apesar de ácida, a polêmica que sustenta O Clube não é gratuita e nem agressiva à fé. Não deve (ou não deveria) incomodar um praticante da fé católica, como mostra a boa aceitação que o filme teve dentro do próprio Chile, país de forte tradição religiosa. Larraín teve o cuidado de fazer uma crítica política, humana e não diretamente religiosa. O angustiante clímax revela muito mais das complexidades do Homem que da fragilidade ideológica da Igreja. Porém, não se pode negar a reflexão sobre um mundo onde o humano e o divino não se encontram justamente pelos dilemas morais dessa mesma instituição. O Homem é a prova inquestionável de que luz e escuridão jamais poderão se separar.