Mais um gol da Argentina com O Cidadão Ilustre
O Brasil é penta. Nossa seleção voltou a ser temida. Eu estaria feliz se o assunto aqui fosse futebol, mas, como eu escrevo sobre cinema, preciso dizer que o cinema argentino ainda nos dá de goleada. O Cidadão Ilustre (El Ciudadano Ilustre, 2016) é mais uma prova incontestável que os “Hermanos” dominam a técnica da narrativa. O filme de Gastón Duprat e Mariano Cohn, estrelado por Oscar Martínez (de Relatos Selvagens), fala sobre um escritor chamado Daniel Mantovani, que chegou ao auge da carreira e, ao receber o Nobel de Literatura, percebe que perdeu a essência.
Radicado na Europa há 40 anos, o personagem fez sua carreira escrevendo sobre personagens de Salas, sua cidade natal. Então, um convite para receber uma homenagem como filho ilustre da cidade lhe dá a oportunidade de buscar o que havia deixado para trás. Voltar ao passado para buscar novas cicatrizes. Voltar ao lugar de onde se fugiu para reencontrar a si mesmo é um enredo conhecido. Grandes filmes recentes, como Nebraska (2013) e Anomalisa (2015), o último de Charlie Kaufman (que também foi tema de um Formiga na Tela), abordam o assunto com grande beleza. Acontece que esse é um tema universal que, quando bem abordado, provoca e traz à tona sentimentos, emoções e pensamentos que dizem mais de nós mesmos do que do filme.
Permeado com diálogos cheios de força, mas que não apelam para as frases de efeito, uma das falas que se destaca é justamente a definição que ele faz de seu trabalho: “Meus personagens nunca conseguiram sair de Salas. Eu nunca consegui voltar”. O discurso inicial, que o personagem faz ao receber o Nobel, é arrebatador.
O retorno é marcado pelo confronto entre o cidadão do mundo e o universo da cidade pequena. Essa narrativa é apresentada em capítulos, como um livro.
Investir no roteiro é sempre o melhor negócio
O filme não perde ritmo, os atos são sempre bem pontuados e a ascensão e queda dos personagens são bem definidos, nítidos. O roteiro é assinado por Andrés Duprat, vencedor de Sundance em 2009 por O Homem ao Lado (comentado também em um Formiga na Tela), em parceria com o mesmo diretor, cujo sobrenome não é coincidência, pois os dois são irmãos. Ainda sobre o texto, entre os detalhes que enriquecem o conjunto está a maravilhosa utilização dos momentos constrangedores. Pontuais e precisos eles mostram bem e com um frescor cômico as diferenças dos universos. Não faltam personagens ricos e situações típicas de uma cidade de interior, como a homenagem feita em vídeo ao “ilustre cidadão”, no melhor estilo dos comerciais de Saul Goodman, personagem de Breaking Bad (tema de um FormigaCast).
Tecnicamente não há o que acrescentar, já que o filme aposta no simples e, como o protagonista mesmo afirma, “o simples é generoso”Não à toa, esse foi o filme indicado ao Oscar em 2016 e vencedor do Prêmio Goya. Oscar Martínez dá o tom perfeito entre o irônico e o nostálgico.
É duro admitir, mas o cinema argentino está muito à frente do nosso. Uma das nossas melhores comédias recentes, La Vingança, é uma coprodução com eles. Toda essa excelência é justamente porque eles sabem lidar bem com a autocrítica. Muito do filme é uma reflexão sobre como a cultura é calcada no próprio sentimento de mudar o mundo a partir de si próprio. Reinventar-se é preciso, mas – para isso – é necessário se dar a chance de estar errado.
Bom, ainda nos resta o futebol… E eles não tem Pelé.