Se fosse qualquer outro cineasta, diríamos que a trajetória de Steven Spielberg é no mínimo esquizofrênica. Em um dia, ele traz As Aventuras de Tintim. Em outro, Cavalo de Guerra. Depois nos dá o bom Ponte dos Espiões e agora nos uma das obras mais infantis – em muitos sentidos – de sua carreira: O Bom Gigante Amigo (The BFG). Se fosse qualquer outro, desconfiaríamos da capacidade do cineasta de transitar entre estilos tão distintos mantendo a qualidade. Como se trata de Spielberg, damos um crédito.
Crédito esse merecido, mas ao qual o diretor nem sempre se mantém à altura. Não que O Bom Gigante Amigo seja um filme ruim – muito longe disso, mas é para uma fatia de público extremamente limitada. Se você tem mais de 10 anos de idade, provavelmente vai achar BGA extremamente enfadonho – e, incidentalmente, será culpa sua, pois a própria sinopse do filme já entrega que ele talvez não queira alcançar nenhum marmanjo barbado.
Baseado na obra de Roald Dahl, o filme conta a história de Sophie (Ruby Barnhill) orfã e deslocada, que se refugia nos mundos de fantasia dos seus livros. Até que um dia é abduzida por um gigante (Mark Rylance) que não quer que a existência de sua raça seja revelada ao mundo, pois seus irmãos, ao contrário dele, não são muito fãs dos humanos. Entretanto, após fazer amizade com o enorme personagem, que também é um deslocado entre seus pares, decide ajudá-lo, contando até mesmo com uma forcinha da rainha da Inglaterra (Penelope Witton) para colocar os outros malvados gigantes no seu devido lugar.
O filme é essencialmente visual, o que é algo bom quando a missão é adaptar obras literárias infantis, que dificilmente oferecem material para sustentar um longa metragem – a exemplo de Onde Vivem os Monstros (2009), de Spike Jonze, um filme estranho, justamente, por se sustentar em um fiapo insustentável de narrativa. Tendo isso em mente, Spielberg decidiu pela jogada mais segura, e colocou dois dos seus competentes conhecidos na equipe – Melissa Mathison assina o roteiro, enquanto Janusz Kaminski cuida da fotografia. Entretanto, um acabou se saindo melhor do que o outro.
O filme é lindo, e a escolha das cores e da decupagem dão um aspecto onírico e fabuloso constante a tudo o que está acontecendo, além de encherem os olhos – atenção ao momento da caça aos sonhos, brilhantemente bem feito, méritos do olho de Kaminski. Toda ambientação, apesar de fantasiosa, não deixa de ser bem realista, e a proporção dos cenários gigantescos não é afetado pela perspectiva de Sophie, além de tudo parecer muito crível. Em alguns momentos, a física do filme parece ligeiramente artificial, mas isso já é preciosismo demais em um filme de fantasia infantil. Afinal, o próprio Spielberg admitiu se debater com os efeitos especiais do longa, principalmente na captura de movimentos – o diretor afirmou ter esperado quase 25 anos para poder executar o projeto da maneira que queria, com a tecnologia atual – mas o resultado final é muito bem executado.
O ponto fraco é justamente a história – e olha que o roteiro é de Mathison, a responsável por E.T., um dos maiores sucessos infantis do diretor. Infelizmente, desta vez o texto não saiu tão bom. Embora possamos – e devamos – argumentar que o filme foi feito para ser um momento-pipoca para a criançada arrastar os pais incautos deslumbrados pelo visual da coisa toda ao cinema, é difícil para os adultos aguentar as piadas escatológicas e o humor pastelão simplista, além dos infindáveis “momentos” da menina-prodígio Sophie. A crítica aqui é justamente dirigida ao desenvolvimento do filme – o próprio Spielberg já nos provou inúmeras vezes que um filme infantil não precisa ser infantilizado.
BGA provoca um profundo estranhamento ao seu término, pois a sensação de que se saiu do nada e foi para lugar nenhum é aguda. É natural que um filme que envolva criancinhas e gigantes não vá provocar grandes tensões ou emoções, mas a maneira simplória e fácil como tudo se cria e tudo se resolve no filme dá a impressão de que nada realmente importa na narrativa, e tudo parece meio jogado – mesmo levando em consideração os divertidos neologismos em inglês que dão um tom prosaico a narrativa. Mas mesmo isso tem dois problemas graves – a imprensa não sabe como é a versão dublada, o que é um erro, afinal dificilmente a faixa-etária do público alvo vai assistir legendado; segundo, depois de um tempo, a mesma brincadeira, padrão recorrente do filme, cansa.
A relação entre Sophie e o Gigante evoca aqueles moralismos padrão de filmes da Disney e de Spielberg, o que não é algo ruim em si – lembre-se novamente que é um filme para infantes, e às vezes mensagens do tipo “não maltrate seus amiguinhos por serem diferentes” vêm a calhar. Porém, isso não justifica o fato de que não existe nenhuma profundidade na relação entre eles e a amizade é só uma válvula de escape para efeitos especiais sofisticados, com piadas rasas envolvendo a irritante esperteza da menina prodígio e a inocência pura do abobalhado gigante. A falta de conteúdo implica inclusive na sequência mais cansativa do filme – e é um problema sério, porque esse momento é justamente o clímax. Ao requisitar a ajuda da rainha da Inglaterra – de novo, é uma fábula amigo leitor – tem início uma sequência que parece interminável, que envolve flatulências e várias piadas do mesmo tom se repetindo. Não é difícil imaginar que a molecada até dê risada, mas os seus acompanhantes adultos vão penar.
Faz muito tempo que não vemos Spielberg em sua melhor forma. Foi-se a época em que seu nome não só significava blockbusters de qualidade e altamente rentáveis, mas também inovadores. Entretanto, isso não significa que ele tenha perdido a mão. O Bom Gigante Amigo vai entreter e com certeza vai render para o estúdio, mas passa muito longe de ser aquele exemplar fantástico de filme que nos faz sonhar e imaginar. O grande mérito da carreira do cineasta foi ter confeccionado obras que deslumbraram gerações distintas nas salas de cinema, e transcenderam sua própria época. O filme em questão, embora bem-feito, tem um público seleto e não impressiona como outras obras do diretor.
Ficamos no aguardo para ver se um dia desses vamos conferir uma obra digna do Bom Diretor Antigo Spielberg.