O diretor Dan Gilroy é um cara privilegiado. Apesar de, até cerca de dois anos atrás, não ter grandes destaques em seus créditos como roteirista – citando Gigantes de Aço e O Legado Bourne entre os mais famosos – seu último trabalho no texto de O Abutre (Nightcrawler) já mostra uma disposição diferente. Sua carreira tomou outro rumo com esse roteiro, pois teve a oportunidade de estrear na direção com ele, que escreveu sozinho e onde criou um personagem de complexidade tal que exigia um intérprete de peso. A boa maré se manteve, pois Gilroy teve sob seu comando um Jake Gyllenhaal no auge de sua capacidade, encarnando um protagonista muito improvável para um ator com fachada de galã.
Em um dos raros casos em que o título em português encaixa-se muito bem no filme, O Abutre já descreve quase que perfeitamente a personalidade e o comportamento de Lou Bloom, desesperado por trabalho, mas que não se importa em roubar o que aparecer à mão para sobreviver. O personagem já se apresenta ao público de forma a deixar claro o tipo de pessoa que ele é. A virada acontece quando ele descobre um mercado de filmagem de acidentes e crimes durante a madrugada, cujos vídeos são negociados nas emissoras para exibição nos telejornais da manhã. Assim, o “rastejante noturno” entra de cabeça no concorrido mercado, fazendo de tudo pelas melhores imagens, que são as mais violentas e chocantes.
Esse tipo de “jornalismo” é algo que conhecemos bem no Brasil, o que potencializa nossa experiência e aumenta a relevância do filme por aqui. Como se a prática já não fosse discutível, o personagem principal trata de tornar tudo mais revoltante do que já é. Jake Gyllenhaal brilha na tela com seu Lou Bloom, exibindo a magreza hiperativa de alguém que dorme pouco e está sempre atento ao que acontece ao redor, absorvendo qualquer coisa que possa ser utilizada em proveito próprio. O ator construiu o indivíduo nos mínimos detalhes, contido no trato social, simpático, de fala clara e articulada e sem nada de ameaçador, com uma postura corporal levemente curvada. Entre as camadas de um personagem tão fascinante está a capacidade de atrair até algum tipo de admiração do público, evidentemente não pelas suas aspirações ou métodos, mas pela inteligência e obstinação. Nada sobre-humano como muitos tipos que vemos no cinema. Lou Bloom é uma pessoa que poderia trabalhar ao seu lado no dia-a-dia.
Entre os parceiros de cena, Rene Russo como Nina, uma veterana do ramo de TV que vai instruindo Lou no caminho do sensacionalismo. A atriz, casada com o diretor, também foi agraciada com um papel de grande profundidade, em que pesam muitos detalhes que vão se desdobrando ao longo do filme, revelando bastante sobre a verdadeira natureza da personagem. Nina é um contra-ponto interessante ao personagem principal, e a atriz se sai muito bem na tarefa. Rick, o estagiário não-remunerado de Bloom, é interpretado por Riz Ahmed, cuja insegurança e condição difícil são realmente convincentes, inspirando piedade no público conforme ele vai sendo atraído pela lábia do abutre.
Claro que apoiar-se apenas neste trio e os relacionamentos entre eles não bastaria. Dan Gilroy mostra um domínio perfeito da sua história, dosando o ritmo dos seus 117 minutos de forma a manter o interesse da plateia em curva ascendente. Pelas descrições até aqui, já ficou claro que não há para quem torcer nesta narrativa, e isso poderia ser um problema em algum momento. No entanto, em O Abutre, a resolução acaba deixando – espertamente – a vontade de continuar acompanhando tudo aquilo. Completando a excelência do conjunto, a fotografia de Robert Elswit, parceiro habitual de Paul Thomas Anderson, destaca as cores no mundo sombrio e noturno do filme, trazendo um contraste que contribui muito para o visual e o conceito do filme.
Hein? Não falei nada de ruim? Não falei mesmo, porque o filme acerta em todos os detalhes. Correndo o risco de parecer repetitivo, Jake Gyllenhaal já havia provado seu valor como ator e seu apetite por papéis difíceis – O Homem Duplicado é o exemplo mais recente – mas Lou Bloom é realmente um passo e tanto para ele e para Dan Gilroy, cujo próximo trabalho na direção já é esperado com um misto de curiosidade e torcida.
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