Filme independente é exemplo inspirador para criatividade do cinema nacional
Qual o papel do dinheiro no resultado de uma produção? Você deve concordar que conforto nas finanças não garante, nem de longe, ótimos filmes, sobretudo na seara do cinema brasileiro. Por outro lado, a falta de recursos não é determinante para o bom estímulo da criatividade narrativa. Na verdade, muitas vezes, serve de escoro para o simplismo. #NUDES (Brasil, 2018) é um daqueles gratificantes casos que mostram que uma joia não precisa ser guardada em cofres suntuosos para ter valor. O filme independente de Guily Machovec é um trabalho de conteúdo, que vai muito além daquilo que se vê ao primeiro olhar.
Machovec, estreando na direção de um longa-metragem, poderia ser um herói daqueles filmes de superação da Sessão da Tarde. A partir de um bate-papo com amigos, decidiu botar em prática um projeto antigo: produzir um filme (nascido como peça de teatro) sobre a complexidade e singeleza dos relacionamentos. Porém, como se aventurar no cinema independente sem um centavo no bolso e sem apoio? Assumindo o papel de diretor, roteirista, ator e muitas outras funções, ele enfrenta uma dificuldade atrás da outra para cumprir sua missão, esta especialmente dura em nosso país, desfilando entre o drama e a comédia, até chegar a almejada estreia.
Falta grana, sobra talento
Não se engane com a primeira impressão. Muitas comédias românticas e romances escrachados já foram produzidos no Brasil. Ao ler a sinopse de #NUDES, ou até mesmo assistindo ao indigno trailer, temos a ideia de estarmos diante de mais do mesmo, mais um filme superficial com diálogos fracos e roteiros toscos que, na ausência de medalhões das novelas, tenta de sustentar por exibições em festivais obscuros. Grande erro. Se você cair nessa, não terá a oportunidade de conferir uma pequena pérola do nosso cinema recente.
A história gira em torno de Leo (Guily Machovec) e Maysa (Yolanda de Paulo), um casal quadrado e tradicional que enfrenta problemas com a rotina do relacionamento. Eles então começam a sair com Adélia (Gabriela Pimenta) e Heitor (Vini Hideki), um jovem casal que acabou de se conhecer. Essa união impacta profundamente suas vidas e a dinâmica que eles têm um com o outro, fazendo-os refletir sobre valores como amor, amizade e lealdade. No entanto, é preferível assistir a essa produção sem ter muito conhecimento sobre ela. Os desdobramentos são mais saborosos quando nos identificamos com a reação os personagens a cada fato novo. O roteiro e os diálogos são tão bem escritos que é muito difícil não ter empatia com a situação, ou até mesmo recordar alguma experiência pessoal.
O que mais encanta em #NUDES é a simplicidade dos fatos narrados e as profundas consequências que acarretam. São acontecimentos mundanos que fazem parte da vida de qualquer pessoa, como se uma câmera escolhesse aleatoriamente um anônimo na rua e passasse a segui-lo, registrando seu cotidiano afetivo. A transição entre a comédia, o romance e o drama é de forma singela e sutil, porém marcante, como acontece no dia a dia de qualquer pessoa emocionalmente saudável.
Urbanoide
O filme remete muito aos dramas urbanos do cinema argentino, que há muito já explora roteiros simples focados no cotidiano, com resultados aclamados mundo afora. Também identifica-se algo de Woody Allen e suas comédias de relacionamento, trazendo as grandes cidades não apenas como cenário, mas como personagens importantes da trama. Aqui, São Paulo está presente em cada quadro, nos muitos planos abertos da cidade, nas vistas das janelas, nos hábitos, na linguagem ou no comportamento dos personagens.
Não se trata de um filme regionalmente marcado, mas sim de uma história cuja urbanidade é fundamento para sua essência. Observe os personagens mergulhados vida cultural, socialmente explícitos ou até sufocados pela metrópole. A tecnologia e a superficialidade das relações, agravada pela massa urbana, também é referência.
O título faz alusão ao universo das redes sociais, ponto importante da trama. A fotografia, majoritariamente em preto e branco, passa para o colorido quando as imagens refletem as postagens dos personagens. A vaidade, o ego, a preocupação com a percepção do mundo e a consequente superficialidade no universo digital é alvo de uma crítica ímpar. Mandar “nudes” pode ser sinônimo de humilhação ou um grito de liberdade, dependendo do momento, mas a estratégia do relacionamento digital é permanente.
A cidade fica ainda mais glamorosa pela radiante trilha sonora, repleta de nomes fortes da MPB contemporânea. #NUDES é filme muito sonoro, tendo a música papel fundamental na formação da atmosfera urbana das primeiras experiências em grupo do casal, mas igualmente importante quando ela se faz quase totalmente ausente no terço final da obra.
Simples e astuto
#NUDES é um filme de roteiro, basicamente sustentado nos diálogos dos quatro únicos personagens. Machovec criou personalidades muito distintas e marcantes, porém incrivelmente familiares. Será raro o espectador que não conheça um Leo, uma Maysa, uma Adélia ou um Heitor, ou que ele mesmo não se veja refletido na telona em algum aspecto.
As conversas entre eles que, salvo em poucas exceções, são verossímeis e muito bem escritas, somado ao talento do elenco em transmitir pensamentos e intenções com simples jogos de corpo. Os personagens são equilibrados, nenhum predominando sobre o outro e alternando-se na atenção do público. Sobre o elenco, todos se saem muito bem (uns mais do que outros), construindo papéis adoráveis. Destaque para o próprio Guily Machovec que, no papel do quadrado Leo, conquista o amor e ódio do espectador em poucos minutos de projeção.
Os cenários alternam-se entre as paisagens urbanas de São Paulo com suas praças, shoppings, cafés e apartamentos de cômodos apertados. Aliás, boa parte do filme se passa entre quatro paredes com câmera fixa, reforçando o caráter teatral do texto. Preste a atenção na cenografia. Muitos itens estão em complementação alegórica à personalidade dos personagens envolvidos ou à tonalidade da cena. Os figurinos são bem escolhidos e de acordo com cada pessoa, valorizando o aspecto ‘vida real’ da produção.
Em um filme com tanta força no roteiro, alguns deslizes são esperados. A obra vai ganhando corpo com o tempo, mas percebe-se um esforço maior em puxar a atenção do espectador para pontos estratégicos da trama, tornando a narrativa um pouco arrastada na junção entre essas partes, sobretudo entre o primeiro e o segundo ato. Há algumas falhas de continuidade em quantidade um pouco acima do aceitável, especialmente quando apenas uma, se for percebida de imediato pela plateia, já não pode ser considerada aceitável.
Infelizmente, será pouco provável que um filme independente como #NUDES ganhe grande público. Após rodar festivais, o filme deve ser lançado diretamente nos serviços de streaming, sem passar pelo circuito comercial. Com pouco orçamento para divulgação, muita gente pode não ter contato esta interessante criação, que poderia ajudar muita gente a reconsiderar o preconceito com o cinema nacional. Esse mal, no entanto, não apaga o vento criativo que está uivando nos estúdios brasileiros, surpreendendo com esporádicas produções de qualidade arrebatadora. Esperemos que eles enviem cada vez mais #Nudes para todos nós.