No Intenso Agora é mergulho comovente em memórias e utopias
Por vezes, o óbvio é necessário. Aqui vai ele: João Moreira Salles faz documentários. Isso há 30 anos, desde que lançou China, O Império do Centro. No caminho, algumas obras cravadas definitivamente na história do cinema nacional. Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Entreatos (2004) são exemplos.
Voltemos ao óbvio. Documentário vem de documentar. É esse o registro por trás dos dois filmes citados. Salles documentou a violência urbana brasileira e os bastidores da campanha eleitoral que levou Lula à presidência. Em ambos, a despeito de qualquer subjetividade possível (e há muitas, sempre), o registro documental é direto.
(Falando em documentários, acesse também a crítica de Um Filme de Cinema, de Walter Carvalho)
Logo no início de No Intenso Agora, a narração do próprio diretor afirma: “quem filma nem sempre sabe o que está filmando”. Diz isso sobre um filme amador onde se vê uma família brasileira dos anos 60. A babá, negra, se afasta do quadro para que apenas a família apareça nas imagens. Quem filma, sem querer, revela as relações de classe no Brasil.
A partir de registros amadores de sua mãe em uma viagem à China em 1966, Salles passa a tecer uma delicada trama histórica e pessoal. Ela será composta também de imagens amadoras dos eventos que marcaram aquela segunda metade dos anos 60. Principalmente, o Maio de 68 na França, mas também a Primavera de Praga e a agitação política e social brasileira.
A imagem dos outros
Aqui, explica-se as obviedades do início do texto. Embora, naturalmente, No Intenso Agora seja um documentário, seus registros não são de autoria de seu realizador. Ou são do filme caseiro da mãe ou fruto de uma profunda pesquisa em arquivos diversos. Claro que documentários com imagens de arquivo são absolutamente comuns, mas isso ganha outro sentido ao se aprofundar nesta obra.
Ao propor reflexões sobre essas imagens e organizá-las na construção de sua narrativa, pautada por uma visão quase íntima, Salles reconfigura e aprofunda muitos de seus significados. Assim, por baixo das camadas do registro histórico, encontra camadas de registro sentimental e pessoal.
É dessa mistura entre os fatos e o olhar do diretor para as imagens deles que nasce a beleza do filme. Especialmente porque, ao retornar sempre para a viagem da mãe à China, parece muitas vezes estar tateando sentimentos e não os afirmando. E isso, esse gesto de tatear por sentidos, faz toda a diferença em um documentário.
Esse tateio não é novo na obra do realizador. Dez anos atrás, seu filme Santiago trazia entrevistas com o antigo mordomo da família, o Santiago do título. Mal disfarçando muitas vezes uma relação patronal e ao mesmo tempo afetiva, o documentário tateava a partir das idiossincrasias do velho mordomo aspectos íntimos das memórias do diretor. Ali, o sentido nunca era pleno, estava sempre em construção a cada enquadramento, a cada plano e, principalmente, a cada gesto teatral de Santiago. Mais do que o registro, havia ali uma busca.
Muitas coisas em uma
Isso se repete agora com maior intensidade. É o que faz No Intenso Agora ser sobre muitas coisas. Há, claro, o nascimento e o fim das utopias daquela época. Maio de 68, por exemplo, foi lindo em muitos aspectos, mas não deu em nada imediata e concretamente (continua, evidentemente, dando em algo até hoje, mas em outros sentidos menos concretos). Há também um olhar generoso e até melancólico sobre a juventude – a da época e a de sempre. Das esperanças e do modo como, em meio a toda aquela convulsão social, aqueles jovens nunca mais seriam tão felizes em suas vidas como foram naqueles dias.
A História, na sua vitalidade do “agora” de outro tempo, os sentimentos investigados a partir de imagens que não são suas, o espírito de uma época restaurado por registros feitos sem a noção exata do que se registrava. De todos esses fios se compõem a trama trançada por Salles e em cada um deles há uma carga de emoção autêntica e incontornável.
Porém, há ainda um outro fio que talvez seja o mais denso dentro dessa tessitura. João Moreira Salles parece dedicar muito de sua atenção para o sentido que há em cada enquadramento, em cada plano dos registros amadores. Percebe-se nesse aprofundamento um amor imenso pela imagem em si como objeto de atenção, de análise. Um amor e uma dedicação a tudo que um plano e seu enquadramento podem significar e dizer sobre a realidade e suas muitas camadas. Os sentidos que se pode tirar não do que está no centro, mas à margem ou mesmo fora do quadro.
Volta-se sempre à frase do início, no modo como divaga sobre filmar sem nem sempre saber o que, de fato, se filma. E se até o ato aparentemente objetivo de registrar uma cena pode esconder significados, que dirá o gesto de recompor esses arquivos para uma nova narrativa. Especialmente uma que margeia sempre algo tão íntimo quanto a memória da própria mãe.
Com No Intenso Agora, João Moreira Salles emociona pela capacidade de extrair de imagens alheias sentidos pessoais e universais. O faz sem tirar delas a dimensão histórica. Da mãe, figura recorrente, busca sua felicidade na China. Omite, entretanto, que anos mais tarde ela cometeria suicídio. Prefere não dizer, mas insinua. De certa forma, é uma obra sobre não ser feliz novamente como se foi noutro tempo. E a felicidade pode também ser a esperança. Se ela se perdeu com as utopias derrotadas do século 20 não cabe ao documentário dizer. Que cada um o sinta como puder.