Há tempos que a Netflix deixou de ser apenas um simples veículo de programação de séries e filmes. Ao longo dos últimos anos, investiu no caminho das produções próprias e sua marca vem se solidificando neste segmento de concorrência pesada. A qualidade inegável de seriados recentes como House of Cards e Demolidor (citando somente alguns) e o formato de disponibilizar as temporadas completas das séries para o espectador de uma só vez, contrapondo a ansiosa espera de episódios semanais, encaixou bem. Além disso, soma-se o fato de que muitas destas produções próprias são de conteúdos muito mais contundentes, comparando ao que se vê normalmente por aí…
Investimento que deu certo e, além de manter-se num patamar alto em relação às séries, o canal resolveu entrar no mundo dos longas-metragens. Assim sendo, para este desafio trouxe a bordo o promissor Cary Fukunaga, premiado e elogiado (com razão) pela sua direção segura da primeira temporada de True Detective (seriado produzido pela HBO). E com o polêmico livro do nigeriano Uzodinma Iweala em mãos, publicado em 2005, mais o comando de Fukunaga atrás das câmeras, nasce o primeiro longa da Netflix, Beasts of No Nation.
Nas quase duas horas e meia desta produção (se é para entrar no mundo dos longas, vamos entrar direito!) a trama tem como pano de fundo conflitos internos de guerra em países africanos (acredito que não tenha ficado claro qual o local exato), que representa o embate já manjado entre forças do governo contra rebeldes. Não é novidade, mas dentro deste ambiente, o centro da história é outro e vem através de Agu, um menino pobre que, sem opção, deixa de ser uma criança comum e se torna um soldado precoce, após uma tragédia familiar. Vamos acompanhar todo o processo de mudança de seu comportamento quando entra para o grupo de rebeldes liderado pelo personagem de Idris Elba (Thor e Prometheus).
Aí você pergunta: de novo isso? Ou então: mais uma tragédia para assistir?
Se você gosta de cinema, sim. Este primeiro longa-metragem produzido pelo canal é uma entrada com o pé direito. Fukunaga apresenta um realismo que impressiona e nos remete ao mesmo impacto que tivemos ao ver Cidade de Deus (pelo menos para mim), um exemplo de como uma direção de atores faz a diferença. Beasts of No Nation não economiza na violência, choca quando pode (e deve) e, da mesma forma que o filme do brasileiro Fernando Meirelles, traz substância suficiente para, além de entreter, fazer o espectador refletir ao conteúdo apresentado, sem ser um filme-denúncia apelativo ou emocional demais. Aqui há um contraponto entre violência e sensibilidade na medida certa.
Além de dirigir e ser o responsável pelo roteiro, Fukunaga é quem manda na belíssima fotografia que mistura o verde das selvas africanas com tons acinzentados e sombrios necessários para não deixar de apresentar uma ambientação pesada condizente com a proposta. Inclusive nas mensagens mais explícitas de horror, há um belo emprego de cores vermelhas vindo da imaginação do protagonista, durante um combate em que o verde da selva é transformado em vermelho sangue.
Dentro da narrativa bem estruturada, que faz as mais de duas horas passar em minutos, o uso de uma narração carregada de sentimento e tristeza, vinda do próprio protagonista, é uma aula de bom uso desta ferramenta dentro de um filme. E quando não há narração, as cenas falam por si só, e você irá sentir quase na pele o caminho tenebroso enfrentado por Agu.
O diretor também parece à vontade para extrair o máximo de seus atores, mesmo sendo novatos em sua grande maioria, e o faz muito bem. Como Meirelles fez em seu longa de 2002, o elenco de Beasts of No Nation, formado claramente por iniciantes no ramo, é talvez o ponto mais sólido e o diferencial mais visível desta produção. A veracidade de suas atuações, que em momentos parecem cenas de um documentário de tão expressivas, é capaz até de assustar os desavisados que esperam um filme comum feito para a TV. Mesmo o único rosto mais conhecido no elenco, Idris Elba, não deixa de ser uma excelente escolha como o carismático e imprevisível líder dos rebeldes.
Enfim, a Netflix acertou em cheio neste começo e deixa para os assinantes um soco no estômago que merece ser visto por todos, não somente como um grito de denúncia, mas também como uma obra cinematográfica que merece seu valor e elogios. Que venham mais produções como esta!