“Posso escrever os versos mais tristes esta noite.” É assim que se inicia a construção da personagem de Neruda (Luis Gnecco) no filme homônimo de Pablo Larraín. Se em No (2012), a preocupação do diretor era o início da abertura democrática do Chile, depois de dezessete anos do regime ditatorial de Pinochet, em sua nova obra há a abordagem do preâmbulo do que estaria por vir em toda a América Latina na segunda metade do século XX.
Em janeiro de 1948, o Partido Comunista chileno é declarado como clandestino e o governo inicia uma perseguição ao poeta, senador pelo partido, a fim de prendê-lo. Oscar Peluchonneau (Gael García Bernal) é o policial encarregado de tal tarefa, mas o que poderia ser um filme de tensão crítica à la gato e rato se transforma em uma experiência político poética. A começar pelo tom noir do filme, em sua fotografia muitas vezes fria, que nos transporta para um clima de investigação. Não uma investigação apenas dos locais onde o poeta se refugia para manter sua liberdade, mas a procura do policial Peluchonneau por ele mesmo e pelo entendimento da sociedade em que vive.
Se pode-se criticar Larraín por humanizar um policial cuja função é fazer de pessoas presos políticos, ao mesmo tempo é possível compreender que a personagem é utilizada para estabelecer a alteridade com a figura de Neruda. Monólogos sobre a falsidade da palavra, sobre comunistas e burgueses aristocratas, sobre o ser e o tempo, a impotência diante da transcendência de um mundo binário são elementos que se desdobram na perseguição ao poeta, mas também no descobrimento existencial de seu antagonista.
Já Neruda, mesmo convicto de seus ideais comunistas, em muitos momentos do filme se depara com os questionamentos em relação à sua visão de mundo. Uma camarada de partido que lhe pergunta se no comunismo todos limparão bostas dos outros, ou farão poesias como o poeta, provoca um momento de silêncio até que vem a resposta vacilante: “Todos serão como eu”. Ou uma menina de rua que lhe pede dinheiro, mas a troca de olhares faz com que o poeta lhe abrace como que lastimando o fato de sua ideologia não conseguir alcançar aquela população mais vulnerável.
O filme não se torna cínico a ponto de condenar a utopia comunista, pelo contrário, demonstra como homens e mulheres daquela época foram corajosos, bravos e leais na luta a favor do que acreditavam, mas ao mesmo tempo se encarrega de prestar uma homenagem irônica ao binarismo latente da guerra fria. Há ainda a miséria e a opressão, mas a poesia deixou de ser um fato histórico e o poeta está cada vez mais condenado a ser um marginal na palavra e na sociedade. A construção da personagem de Neruda por Gnecco reflete muito bem isso. Sua passividade diante da fúria interior, ainda mais nos closes, que refletem uma face impotente e resignada, e a altivez persistente nos momentos de superação de um conflito, é uma aula de performance diante as câmeras.
Mas o que faz de Neruda um filme poético, é claro, a sua poesia, seja em palavras, seja em imagem. A criação da obra Cancioneiro Geral durante a perseguição soa como metáfora da resistência do poeta frente ao autoritarismo. A poesia fluída e fragmentada, despejada em caixas postais, vai em todas as direções. Ela, para além das ideologias, é o que eterniza os homens ou os jogam ao sentimento de eternidade. Nada mais lacônico do que o poeta deixar ao policial em seu encalço um livro policial cujo protagonista é um policial com conflitos.
A metáfora poética da palavra se soma às metáforas das imagens. A maestria de Larraín nos cortes constantes, em que os diálogos mantêm a sua fluência, mesmo em lugares diferentes, potencializa o sentido dos questionamentos de Peluchonneau e de Neruda. É como se o diretor pontuasse que tudo é uma condição teatral, os espaços, os corpos e as palavras fluem e se desfazem. A presença deles em palácios, casas, ruas, cabanas e lugares inóspitos vai fortificar o sentido do homem estar no mundo, e de como ele se coloca neste por meio das ações e das palavras.
Neruda é um filme arrebatador. Em um momento quando as pós verdades estabelecem o retorno de sentimento de Guerra Fria, nada mais ideal do que a presença desta obra no contexto contemporâneo. É uma bela homenagem ao poeta chileno, sua resistência, sua luta, suas palavras, seu ideal utópico. Mas, ao mesmo tempo, é uma homenagem à arte, à poesia e ao cinema. Mesmo que os versos de Neruda soem tristes, é na alegria de viver que eles são construídos, assim como qualquer ideal de justiça e solidariedade.