As turbulências da década de 1970 em Mulheres do Século 20
Um dos maiores choques da vida é a descoberta de que não temos controle total de nossos destinos. Há uma quantidade considerável de fatores que fogem da percepção mais imediata e interferem direta ou indiretamente nas decisões tomadas. A junção de boa parte desses fatores é o que chamamos de zeitgeist, ou simplesmente “a cultura de uma época”. Nos dias de hoje, ela é definida pela internet e a globalização. Na década de 1920, era pelos valores da chamada “geração perdida”. Na de 1940, pela Segunda Guerra Mundial e o totalitarismo. Em Mulheres do Século 20 (20th Century Woman), vê-se como foram o rock n’ roll e a revolução comportamental os definidores da turbulenta década de 1970.
Situada na cidade de Santa Barbara, Califórnia, a trama do novo longa metragem do cineasta Mike Mills se concentra nos desafios enfrentados por Dorothea (Annette Bening), uma mãe solteira de meia idade, na criação de seu único filho, Jamie (Lucas Jade Zumann), um adolescente influenciado pelas mudanças culturais da sua época. Além dos dois, vivem na casa dela, como locatários, o gentil William (Billy Crudup, visto recentemente em Jackie) e a instável Abbie (Greta Gerwig). Julie (Elle Fanning, de Demônio de Neon), a melhor amiga de Jamie, também é uma presença constante no local. Juntos, eles formam uma espécie de família contemporânea.
Repleto de referências históricas, Mulheres do Século 20 não nos deixa esquecer, nem por um segundo, que a sua narrativa se desenrola nos anos 70. Com uma trilha sonora emocionalmente poderosa, que alterna entre as composições de Roger Neill (além de reverenciarem o som de grupos setentistas como Kraftwerk, os trechos com teclado servem como um indicativo do tipo de música que seria dominante nos anos subsequentes) e canções de bandas de rock e punk, o longa também oferece ao espectador a oportunidade de viajar pela década através do trabalho excepcional de reconstrução de época feito pelo design de produção, que vai desde as vestimentas e os móveis escandalosamente coloridos do período até a presença de objetos de cena que remetem aos anos retratados.
Chamativos em si mesmos, alguns desses componentes visuais e históricos são brilhantemente ressaltados por certas escolhas estéticas de Mike Mills, como a ótima ideia de transformar algumas das andanças de carro em uma espécie de viagem lisérgica, em que o emprego de borrões na imagem e a presença das luzes do farol e da lanterna do automóvel, juntamente com as da rua, criam uma prazerosa sensação de conforto, e pela fotografia saturada (mas nunca esterilizada) do talentoso Sean Porter, que, engolfando os personagens, gera no espectador uma forte conexão emocional e um sentimento de familiaridade (aliás, não lembro de ter visto recentemente um longa filmado com câmera digital cuja fotografia saturada fosse tão calorosa e pulsante como neste filme).
Porém, mais do que isso, são nos comportamentos e nas ações dos personagens que o reflexo dos anos 70 se mostra mais presente. Com a exceção de Dorothea e William, que foram criados nas décadas anteriores, todos os personagens de Mulheres do Século 20 são frutos da revolução sexual e cultural. Criados em uma época confusa, em que os valores conservadores eram sobrepostos por outros mais liberais e progressivos, eles se veem perdidos, presos no meio de um período de transição em que os Estados Unidos e o restante do Ocidente mudavam completamente a sua aparência, abandonando de vez a tradição para mergulhar cada vez mais em um comportamento errático.
Essas influências externas incontroláveis fazem com que os personagens mais jovens embarquem em experiências que, apesar de serem condizentes com a época em que vivem, acabam por torná-los seres solitários e confusos. Um exemplo disso são alguns dos discursos ideológicos maciçamente presentes nos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo que parecem oferecer a Abbie, Julie e Jamie uma perspectiva esclarecedora e uma sensação irrefreável de liberdade, eles inspiram os personagens a agirem de uma maneira que é muito mais uma resposta às convenções e regras das pessoas mais velhas do que um comportamento de fato genuíno. O resultado disso, indubitavelmente, é sempre a insatisfação e incompletude emocional.
Uma família fragmentada
No entanto, essas inconsistências não passam despercebidas do olhar sempre atento e preocupado de Dorothea. Vinda de uma outra geração, ela assiste a tudo com curiosidade e espanto. Se, por um lado, se diverte com a excentricidade do tipo de música feita na época, por outro, devido também em parte às duras e enriquecedoras experiências que já teve ao longo da vida, percebe que muitos dos jovens que viviam naquela década trilhavam caminhos sem volta. Reforçado pelo ótima montagem, que, alternando as cenas do filme com imagens de arquivo e fotos antigas, enriquece as diferenças de perspectivas entre épocas distintas, esse conflito de geração é um das discussões mais bem trabalhadas pelo roteiro de Mike Mills (as reações diversas a um discurso de Jimmy Carter é um exemplo perfeito desse conflito).
Mas é interessante ver que, ainda assim, com todas essas diferenças, os personagens sentem um calor e uma reciprocidade de sentimentos entre eles. Com a exceção óbvia da relação de Dorothea e Jamie, os outros – Abbie, Julie e William – poderiam facilmente se fechar nos seus mundos particulares. Porém, curiosamente, nos momentos mais vulneráveis, eles sempre recorrem ao outro. Oriundos de diversos seios familiares fragmentados, esses personagens, juntos, formam uma família desconjunta, mas estranhamente funcional. Afinal de contas, não importa quais são as turbulências enfrentadas por uma época – todas elas possuem a sua cota de elementos negativos -, todos nós precisamos de alguém ao nosso lado (o emprego de algumas das narrações em off e saltos temporais nas biografias dos personagens reforçam isso).
Contando com um elenco competente (Billy Crudup é um dos atores mais subestimados da atualidade) e uma das melhores atuações da carreira de Annette Bening, Mulheres do Século 20 é um longa que poderia ser, em todos os sentidos, uma caricatura da década que retratra. Mas, indo na contramão do esperado, a obra não só é um retrato fiel e genuíno do período, como também apresenta personagens autênticos e ricamente construídos. É uma das gratas surpresas desta temporada.