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Mogli: O Menino Lobo – O extraordinário é demais!

Mogli: O Menino Lobo

A história e os valores das civilizações que ela carrega são algo curioso. De La Fontaine (séc. XVII), passando pelos irmãos Grimm (séc. XVIII), até H. C. Andersen (séc. XIX), as histórias infantis poderiam ser consideradas demasiadamente “agressivas” para a sensibilidade das pessoas no século XX. Isso porque até o início do século passado, o próprio conceito de “infância” era algo, no mínimo, nublado. Esperava-se das crianças que fossem “mini-adultos”, e as histórias dirigidas a elas eram apenas facilitadas em termos de simplicidade narrativa, mas assassinatos, violência, misoginia e outras ações – consideradas atrozes hoje pelo cidadão contemporâneo – rolavam soltas.

Então vieram a pedagogia e a psicologia modernas, tornando lenhadores retirando velhas das tripas de lobos assassinos algo intolerável. Walt Disney entendeu isso bem rápido, e ao fazer as suas próprias versões de histórias clássicas tomou o cuidado de adocicá-las o bastante para não fazer crianças e adultos saírem correndo horrorizados. Uma dessas versões foi a história clássica do garoto Mogli, que contava com animais falantes e músicas. A versão pulp original, O Livro da Selva, do grande Rudyard Kipling, seguia a tônica dessas histórias do séc. XIX, ou seja, o estúdio Disney precisou “reinterpreta-lo”. A mais perfeita “fórmula-Disney” para animações de clássicos de literatura e fantasia. Um retumbante sucesso de 1967.

Mogli: O Menino Lobo

Mas o tempo passou, e agora estamos no século XXI. A internet e a negligência parental desfizeram tudo o que a psicologia e a pedagogia tiveram o trabalho de desenvolver no século XX, e hoje temos uma geração de crianças e a adolescentes apáticos que não se impressionam e não se importam com violência e sexualidade nas telas. Ao contrário! Sem elas, não conseguem se “divertir”. As novas versões de antigos clássicos agora são cheias de ação, violência e “realismo”. É claro que, mais cedo ou mais tarde, um personagem carismático como Mogli ia entrar nesse balaio. E o resultado – adivinhem? – é um filme cheio de ação, violência e “realismo”.

Neste novo Mogli: o Menino-Lobo (The Jungle Book), a trama é essencialmente a mesma da animação clássica de 1967. Um menino abandonado nas selvas da Índia é adotado por Raksha, uma loba integrante da alcatéia liderada pelo bom e sábio Akela, que acaba orientado pela pragmática pantera Baguera. Entretanto, Mogli é obrigado a fugir após Shere-Khan, um tigre-de-bengala, lhe jurar de morte. Na sua fuga, encontra Balu, um urso que se dedica apenas a fazer o que quer. Junto com seus amigos, o menino vai enfrentar o inevitável confronto com Shere-Khan.

Mogli: O Menino Lobo

Essencialmente a mesma, mas com muitas diferenças. Todas elas relacionadas ao tom escolhido pelo diretor Jon Favreau para a película. Essas diferenças em relação a animação clássica – escolhas do diretor – acabam sendo a maior parte dos problemas do filme. Coisas óbvias, na verdade. Um tigrinho de pelúcia é bonitinho e você pode dar um de presente para uma criança. Um tigrinho de verdade é um animal assassino de meia tonelada e você pode achar imprudente colocar seu filho perto de um. A questão é que uma fábula com animais falantes que cantam e são amigos, mas que mantém traços fundamentais e instintivos como a posição na cadeia alimentar e a maneira como caçam, simplesmente não se encaixam. Ou um ou outro.

A versão de Favreau para o personagem acaba sendo esquizofrênica. Isso não chega a ser um grande problema para o público adulto, que vai achar o filme no máximo estranho. Mas a tentativa de se aproximar do público jovem contemporâneo, adicionando assassinatos a sangue frio cometidos por animais digitais hiper-realistas em um filme que insiste em manter suas canções infantis, provavelmente vai causar o efeito oposto. De fato, na Índia, terra natal de Mogli, a classificação para o filme é de 12 anos, ou seja, nada de crianças. Embora cause um certo efeito nostálgico ouvi-las novamente – este resenhista admite que estava ansioso para saber se elas estariam lá – as músicas simplesmente não têm espaço no filme.

Mogli: O Menino Lobo

É um problema de muitos diretores hoje. O foco nos aspectos visuais e técnicos, com pouca ou nenhuma preocupação com a coerência narrativa. Favreau prova aqui que o primeiro – e ótimo – Homem de Ferro é apenas um ponto fora da curva na sua carreira como diretor. Mas, como dissemos, justiça seja feita. Os aspectos visuais e sonoros do filme são ótimos. Todos os animais são criados com perfeição, e os cenários das selvas da Índia são muito bonitos. As diversas iluminações ajudam a pontuar muito da percepção do protagonista sobre o momento da sua jornada – em particular o contraste do fogo na noite do ato final. Mas não exime os problemas da história. É óbvia a tentativa de aproximar este Mogli da versão original de Kipling, mais visceral. Entretanto, Favreau parece não entender que mais violência e realismo não tornam uma história fantástica mais impressionante e melhor. Às vezes, menos é mais.

Falando no protagonista, outro problema. Neel Sethi, alegadamente escolhido entre milhares de atores, não segura o filme. Seu Mogli é inexpressivo e muitas vezes canastrão. Essa também é de inteira reposnabilidade do diretor. São duas horas de filme atuando contra uma tela e pessoas de verde. Sequer atores muito mais experientes conseguem segurar uma bucha desse tamanho, quanto mais um garoto sem nenhuma carga cinematográfica.

Mogli: O Menino Lobo

O outro problema mais sério vai para a conta da distribuidora. Não dá para ter muita noção da qualidade original do filme pela opção desta última em exibir o filme dublado, com muitas apresentações bastante artificiais dos atores-dubladores brasileiros, para a imprensa. Não é síndrome de vira-lata, mas é necessário entender que existe uma diferença brutal nas capacidades de atuação e dublagem de nomes como Bill Murray e Ben Kingsley para suas respectivas contrapartes Marcos Palmeira e Dan Stulbach. Talvez a ausência mais sentida tenha sido a cena da serpente Kaa, originalmente dublada pela voz envolvente e distinta de Scarlett Johansson, que aqui foi substituída pela genérica atriz global Alinne Moraes. Mesmo a opção por um cantor profissional, Tiago Abravanel, para a cena musical do Rei Louie, no lugar de Christopher Walken, simplesmente não funciona, também pelo motivo da incoerência do realismo que mencionamos anteriormente. Além da perda das vozes de Idris Elba e Lupita Nyong’o, dois dos atores mais interessantes da última década.

Mogli: O Menino Lobo

Uma sucessão de escolhas ruins, voltadas para a tentativa de se aproximar de um público jovem pouco impressionável, acabam impressionando pela estranheza provocada ao término do filme. Não dá para saber exatamente o que – se o filme passou da conta na violência por ser infantil, ou se desrespeita a inteligência do espectador com canções infantilizadas no meio de um filme de ação. O fato é que não funciona. Como inúmeras outras adaptações de fábulas recentes, a opção pelo alegado “realismo”, uma desculpa esfarrapada para encher um filme com violência e efeitos especiais, cria um monstro de custo milionário que tenta atingir diversos públicos, mas corre o risco de achar nenhum.

É um filme que peca pelos excessos. Por querer coisas demais. Ironia das ironias, Favreau deveria ter ouvido a música tema de Balu.

Necessário, somente o necessário. O extraordinário, sr. Favreau e Estúdios Disney, às vezes é demais.

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