Minha Vida De Abobrinha tem dificuldade em achar um tom
Algumas animações têm a intenção de serem mais sérias. Enquanto mantêm elementos característicos de trabalhos feitos especialmente para as crianças, elas buscam apresentar uma abordagem madura. No entanto, ao mesmo tempo que essa ousadia produziu ótimas obras como A Noiva Cadáver e Coraline e o Mundo Secreto, ela pode ser altamente problemática, uma vez que a transição entre os momentos leves e pesados é difícil de ser trabalhada, podendo gerar uma profunda oscilação de tom. Infelizmente, Minha Vida De Abobrinha (Ma Vie De Courgette), a nova animação em stop motion do diretor Claude Barras, sofre desse problema. Alguns dos alívios cômicos não se conectam com as cenas mais densas.
(Como o assunto aqui é stop motion, leia também a crítica de Kubo e A Espada Mágica e confira este vídeo que compila a evolução da técnica ao longo do século)
No filme, o público acompanha o personagem Abobrinha (voz de Gaspard Schlatter). Preso a uma realidade opressiva, ele vive ao lado da mãe (voz de Natacha Koutchoumov), uma alcoólatra que passa os seus dias bebendo e assistindo à televisão. Num dia, após fazer barulho ao deixar cair várias latinhas de cerveja no chão, Abobrinha, assustado, fecha a portinhola do sótão – o sótão é o quarto dele – na cara da mãe. Esta cai de uma altura considerável e falece. Órfão, ele é encaminhado a um orfanato. Lá, ele tem dificuldades em se relacionar com as outras crianças, até o dia em que chega a jovem Camille (voz de Sixtine Murat), uma garota que lhe ensinará o poder do amor.
Como é possível perceber pela descrição da história, Minha Vida De Abobrinha tem um ponto de partida corajoso. Transformar uma criança de 9 anos em homicida, mesmo que totalmente acidental, é uma decisão muito ousada. No entanto, essa ousadia não termina aqui. Ela se mostra presente também em outros momentos. A cena em que o pequeno Simon (voz de Paulin Jaccoud) explica para Abobrinha quais foram os motivos que levaram cada uma das crianças do orfanato a serem abandonadas pelos pais é devastadora e real. Por um instante, esquecemos que estamos vendo uma animação. Outro momento avassalador é o terno diálogo entre Abobrinha e Camille no qual esta expõe o que de fato aconteceu com ela e os pais. Cenas como essas não são mesmo comuns em filmes infantis.
No entanto, Minha Vida De Abobrinha não quer ser uma animação exclusiva aos adultos. Aliás, ela é destinada às crianças. Seu maior objetivo é mostrar para os pequeninos que, não importa o tamanho do desafio enfrentado durante a infância, a inocência nunca deve ser perdida. Mas, para balancear a narrativa, o filme precisa intercalar as cenas dramáticas com momentos de alívio cômico e humor físico. E é nessa intercalação que reside o maior defeito da obra. Enquanto exibe as brincadeiras e interações entre as crianças, o filme funciona e se equilibra perfeitamente como uma dramédia. Porém, é totalmente ineficaz nas tentativas de realizar um humor mais pastelão e direcionado diretamente ao público infantil. Além de serem criativamente pobres, os momentos em que isso ocorre quebram o tom da narrativa e dão a impressão de se tratar de um outro filme completamente diferente.
Minha Vida De Abobrinha também peca pelo excesso em certos instantes. Escrito pelo próprio Claude Barras e mais outros três roteiristas (Céline Sciamma, Germano Zullo e Morgan Navarro), a partir do livro de Gilles Paris, o roteiro contém alguns momentos dramáticos que poderiam ter sido excluídos. Dois desses momentos ocorrem durante a viagem feita pelas crianças a um chalé nas montanhas de gelo. Envolvendo outros pais com os seus respectivos filhos, esses momentos reforçam desnecessariamente o drama do protagonista e dos outros personagens. Eles não precisavam existir para entendermos a dor que Abobrinha e os seus amigos sentem.
Pelo outro lado, todavia, enquanto esses instantes pecam pelo excesso, há outros que sofrem por serem apressados demais. Nesse sentido, quase todos os conflitos apresentados no terceiro ato são resolvidos rapidamente, sem que haja tempo para que ressoem emocionalmente no público. Eles aparecem e somem abruptamente, sem deixar nenhum resquício.
Mesmo com problemas, o filme agrada.
Entretanto, mesmo com todos esses problemas, há qualidades em número suficiente para transformar o filme em uma experiência agradável. A história é humana, os personagens são doces, carismáticos e bem desenvolvidos (embora, aparentemente, Simon seja um arquétipo – o garoto que expressa sua raiva fazendo piadas com os outros – ele é um dos mais bem trabalhados pelo roteiro, resultando em uma criança complexa) e a maioria dos momentos dramáticos são genuinamente profundos. Ademais, há alguns simbolismos simples, mas belos, como o da pipa – símbolo da libertação das amarras da mãe que Abobrinha tanto sonha – e dos pássaros nos ninhos – indicando que, aos poucos, o protagonista começa a se sentir em casa no orfanato.
A parte técnica, por sua vez, é inteiramente irrepreensível. Investindo no começo em belíssimos planos plongées (câmera acima dos elementos em cena) que retratam a situação vulnerável daquelas crianças, Barras e David Toutevoix, o diretor de fotografia, compõem enquadramentos que, em sua economia, são elegantes e precisos. Obviamente, cada plano foi pensado com carinho e calculado milimetricamente. E a montagem de Valentin Rotelli respeita todo esse carinho economizando nos cortes e dando tempo para que cada plano possa ter o seu potencial desenvolvido. Além disso, o competente e também preciso trabalho da direção de arte contribui para a beleza plástica e temática dos enquadramentos.
No entanto, nada disso é tão brilhante quanto o design de som do filme. Diegéticos, os sons ressaltados pela mixagem servem tanto para antecipar a próxima cena quanto para refletir os medos e desejos do protagonista. Quando Abobrinha está preso no sótão, ouvimos barulhos de carros na rua, simbolizando que o desejo dele era estar do lado de fora; no momento em que chega no orfanato e começa a arrumar as coisas no quarto, ouve-se as brincadeiras das crianças que ele tanto receia conhecer; e no instante em que Simon não o deixa dormir, escutamos barulhos de grilos, indicando que, novamente, ele queria estar do lado de fora, livre. Já em um momento específico compartilhado por Abobrinha e Camille, ouvimos aumentadas as batidas de coração do protagonista (desta vez, o som não é diegético), um uso maravilhoso do recurso.
Com uma animação competente, Minha Vida De Abobrinha é um filme oscilante, por vezes problemático, mas, ainda assim, prazeroso de ser visto. Na mesma proporção que tem falhas, possui qualidades que merecem ser destacadas. E a história de crianças abruptamente retiradas de seus cotidianos e jogadas no redemoinho da vida adulta enternece qualquer coração.