O americano Mathias Gold (Kevin Kline) vê na herança deixada pelo pai uma oportunidade de recomeçar a vida. Além de resolver seus problemas financeiros, o imenso duplex em Paris também seria uma forma de romper de vez com as péssimas memórias que carrega da figura paterna que há muito tempo não via. O que Mathias logo descobre, é que a viagem à capital francesa implicaria numa reviravolta existencial, levando-o a caminhos completamente opostos aos objetivos iniciais.
A premissa de Minha Queria Dama (My Old Lady, EUA, França, 2015), filme de estreia do aclamado diretor de teatro norte-americano, Israel Horovitz, atuando aqui também como roteirista, poderia até ser uma comédia de situação sem grandes novidades: o apartamento herdado é ocupado pela simpática, mas resoluta, Mathilde Girard (Maggie Smith), uma senhora de 90 anos que não tem a menor pretensão de se mudar. O problema é o que um documento validado pela lei francesa garante usufruto do imóvel pela moradora até o fim da vida dela, além de uma pensão vitalícia a ser paga pelo proprietário do local. A complicação aumenta quando a filha de Mathilde, Chloé (Kristin Scott Thomas), promete ir até às últimas consequências para garantir os direitos e a segurança da mãe. A comédia, no entanto, serve apenas como contraponto ao delicado drama prestes a se desenrolar, quando Gold descobre que a mulher que acaba de conhecer tem uma importante ligação com seu passado.
De fato, o drama-romântico é repleto de pinceladas de humor, recurso ora bem utilizadas para amenizar a carga dramática – arrancando até algumas sinceras risadas da plateia – ora totalmente descartáveis, como na desnecessária e tola cena pós-crédito ou como justificativas para eventuais furos no roteiro. Nada, porém, que comprometa o resultado final, uma delicada história sobre autodescoberta e as graves consequências que o enfrentamento do passado pode causar em uma vida.
A veia cômica está toda centrada no talento de Kevin Kline, ator mais famoso pela habilidade para comédias do que pelos bons dramas em que participou. Kline brilha na pele de homem solitário e deprimido, que usa, sem sucesso, o deboche como fuga da desorientação em que vive. O brilho, aliás, se estende a toda trinca de protagonistas, sobrando talento em cena. Soberba como sempre, Maggie Smith já encanta logo pelo olhar, fuzilando sem dó o antagonista com verdades cruéis que também não a deixarão impune. A atriz emite, a cada quadro, a força que a personagem deseja mostrar ao mundo, mas sem esconder a fragilidade que essa característica esconde. O resultado é uma Mathilde apaixonante, que conquista um público contrariado, que sabe da aparente falta de remorso da velha senhora, independente do mal que causou.
Sem ficar atrás, Kristin Scott Thomas não exagera a dramaticidade de sua Chloé, nem a atenua a ponto de torná-la mera coadjuvante em meio ao embate principal. Longe de ser apenas o suporte romântico da história, Chloé mescla sentimentos de solidão, rancor e amor para compor uma personagem complexa, em busca de uma felicidade que julga não merecer, encontrando em Mathias detestáveis pontos em comum.
Soma-se ao excelente trabalho do talentoso trio de atores, a bela fotografia que explora os lindos cenários da cidade de Paris, colocando-a como uma coadjuvante de luxo do filme. Repare também no trabalho da direção de arte na reconstituição do apartamento, um local lúgubre e sombrio, como a vida dos três ocupantes, repleto de relíquias do passado que, embora guardadas com certo esmero, não tem mais nenhum significado. A sisudez no ambiente interno contrasta com a luminosidade dos jardins e ruas parisienses, um convite para sair, uma metáfora para a libertação do passado, como caminho para uma nova oportunidade de ser feliz.
Minha Querida Dama é uma ótima chance para se assistir três premiados talentos do cinema em ação – Kline, Smith e Thomas – e uma boa promessa na direção. Vindo do teatro, Israel Horovitz usou muito da linguagem dos palcos para compor a versão cinematográfica da peça que escreveu e dirigiu com muito sucesso nos Estados Unidos e na França. Para fãs da arte no cinema, a influência teatral pode ser muito bem-vinda (claro, quando não resulta em retumbantes desastres, como já acontecido). Trata-se de um filme familiar, que pode ser visto sob vários ângulos, mas todos com uma boa dose de reflexão sobre quais teriam sido as nossas escolhas. O passado pode ser um fardo quase impossível de se carregar, frio e escuro como um velho e sufocante apartamento, mas sempre haverá uma janela pronta para ser aberta. O difícil é enxergá-la.