O processo de um relacionamento abusivo é simples de se explicar, mas não de se resolver. Encontra-se uma pessoa bacana e, com o tempo, ela aparenta ser tudo o que se quis. Uma série de ideias e comportamentos demonstram que as afinidades entre você e ela serão o alicerce de um futuro promissor. Admiração, companheirismo e felicidade nunca pareceram alvos tão fáceis de se acertar. No entanto, pouco a pouco, aparecem um apontar o dedo, as censuras e os julgamentos diante de qualquer discordância demonstrada. O outro quer todas as suas vontades supridas, já as suas são meras vaidades desimportantes.
Você se percebe como um território a ser invadido, conquistado e dominado, mas, por mais que esteja explícita a sua desumanização feita pelo outro, ainda possui na mente a ilusória imagem inicial, caracterizada como um fio de esperança segurado com o fervor de que é apenas uma fase. Vai mudar. Você tenta descobrir no que está falhando para o outro ser assim tão bruto e agressivo, pois é impossível alguém que se demonstrava tão feliz ao seu lado estar agora descontente.
Então, num determinado momento sem você perceber, sua identidade se foi e, mesmo que você tente recuperá-la, sabe que terá de caminhar por um território no qual nunca se adentrou, o território do outro, mas sem as mesmas armas e forças que ele possui sobre o seu.
Meu Rei (Mon Roi) mostra Tony (Emmanuelle Bercot) numa clínica de fisioterapia, se recuperando de um rompimento nos ligamentos do joelho, ao mesmo tempo em que se lembra da relação com Georgio (Vincente Cassel). A metáfora é explícita. Tony precisa passar por um processo longo de recuperação para voltar a caminhar sozinha. Sua psicóloga faz a inferência de que o acidente com o joelho foi algo inconscientemente voluntário, já que joelho, em francês, genou, é a separação entre eu e nós (Je=eu, nous=nós).
Se em Polissia a diretora Maïwenn adota o inusitado ponto de vista do poder estatal diante da violência contra jovens e crianças, em Meu Rei opta por um ponto de vista supostamente óbvio e fácil, o da vítima de um relacionamento abusivo. Supostamente, pois o primeiro ato é conduzido de forma tão eficiente que nos sentimos perdidos tanto quanto a personagem Tony, diante do desenvolvimento inesperado de sua relação com Georgio. O que se pinta como uma narrativa romântica, bela e moral, que provavelmente se desenrolará como uma crônica de um amor positivo, desemboca-se numa trama em que, a cada tomada, uma confusa espiral psicológica se agrava. E nesta espiral somos conduzidos a não ter uma visão impessoal e desapaixonada do fato, sofremos, nos indignamos e sentimos na pele o mesmo que Tony e, assim como ela, nos sentimos impotentes.
Maïwenn expressa a todo momento o domínio do que se quer contar. Um diálogo irônico com Georgio denominando-se como “Rei dos sacanas”, um “safada” como demonstração de carinho são pontos de partidas para aquilo que se agravará. E não ainda contente em explicitar para o público como a barbárie pode ser praticada em forma de brincadeiras pueris a dois, nos cortes para a situação de Tony na clínica, sempre há de aparecer a xenofobia cordial, a piada racista tendo a banana como um brinquedo inocente num café da manhã. É como se a diretora nos alertasse de que assim como é difícil ter consciência da discriminação dentro de uma coletividade, é imperceptível a forma como um vínculo afetivo se transforma numa relação de poder.
E não há como não destacar as excelentes performances de Emmanuele Bercort, laureada com a palma de ouro em Cannes, e Vincent Cassel. A química entre os dois faz com que a narrativa em momentos de alegria do casal flua como as relações perfeitas que tanto idealizamos. A cada momento de graduação do clímax, percebemos elementos que coadunam com o momento do casal. Da mesma maneira que Tony vai se apequenando diante da confusão psíquica, Georgio se agiganta a cada situação.
Por meio das expressões, gestos, olhares e mise-en-scène (disposição das personagens em uma cena), a narrativa ganha contornos de suspense ao construir uma atmosfera em que a vítima está longe de encontrar uma resolução diante de seu algoz. Interessante é o trabalho de figurino: enquanto o de Tony vai do simples ao colorido patético, simbolizando a perda de sua identidade, o de Georgio pouco se altera nas cores escuras, ou seja, o dominador sempre esteve ali. No entanto, Maïwenn não dispensa alfinetadas no personagem como, por exemplo, montá-lo num pônei para caracterizar seu poder como o de um ser minguado.
Meu Rei é perfeito naquilo que se propõe. Mais do que uma denúncia, o filme se coloca como um estudo das características e sequelas de uma relação abusiva. Seu desfecho amargo demonstra para os que são conhecedores ou vítimas do fato que aquilo que chamamos de amor pode variar de um sentimento belo para uma necessidade de ser reconhecido a todo momento pelo outro. É esta necessidade a brecha que o outro pode se utilizar para que nos transformemos de um ser pleno, que ame, em um reles súdito, cuja subserviência resulta na perda do amor próprio e da identidade. Reconquistá-los depende de algo muito além do tempo e do físico.