Me Chame Pelo Seu Nome é mais do que uma simples história de amor
Os créditos iniciais de Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me By Your Name) são compostos de notas tocadas efusiva e não-diegeticamente em um piano e por várias fotos contendo imagens de esculturas antigas. No entanto, ao longo da primeira parte, do ponto de vista dramático, uma das coisas que mais chama atenção é a sutileza com que os sentimentos, toques e olhares são insinuados através de um jogo cinematográfico que evita revelar todas as suas cartas imediatamente, pois prefere as obviedades do implícito.
Ora, não há necessidade de conhecer profundamente música e a Antiguidade para perceber que entre as características artísticas mencionadas acima, além do desenvolvimento narrativo dos minutos iniciais, há uma certa contradição. Ao passo que as primeiras se destacam pela dominância do som e precisão do esculpir, a segunda é definida por elementos opostos, como uma indecisão deliberada acerca do que está realmente acontecendo, do que os personagens de fato sentem e quais são as coisas que estão em jogo. Isso porque ainda conhecemos pouco sobre o protagonista vivido pelo jovem Timothée Chalamet (em uma ótima atuação) e o seu muso interpretado por Armie Hammer (de Animais Noturnos e O Agente da U.N.C.L.E.).
Diante disso, é inevitável que surja uma dúvida sobre o propósito desse paralelo. Entretanto, a solução do “mistério” não será encontrado nos aspectos que já foram discutidos, mas nos desdobramentos da narrativa. Em relação às esculturas gregas, é vital lembrar que, além de simbolizarem a beleza, elas representavam homens e deuses antropomórficos. Na cultura grega (e em muitas outras), estes últimos encorporavam, em parte, valores espirituais e a maneira como um povo ou sociedade encarava conceitos abstratos.
Dentro da lógica de Me Chame Pelo Seu Nome, ter isso em mente é essencial, já que o diretor Luca Guadagnino subverte constantemente essas verdades. Inicialmente, isso se torna perceptível no relacionamentos dos dois personagens principais e na forma como um enxerga o outro. Antes de se apaixonarem, o que leva Elio (Chalamet) a se aproximar de Oliver (Hammer) não é somente a beleza física, mas também o fato de que Oliver encarna aquilo que Elio considera valioso: a mundanidade. Em razão de sua formação altamente intelectualizada, o protagonista convive apenas com a realidade retirada dos livros e uma beleza que é essencialmente etérea. Quando encontra Oliver, ele se depara com uma beleza possível de ser acariciada e um sujeito completamente inserido no mundo (notem como ele dança livremente ao som de uma música popular e aprecia a comida, a bebida e a natureza).
Similar a um semideus, Oliver é a expressão física do belo, além da antropomorfização dos ideais apreciados por Elio (não é à toa que Hammer, por vezes, é filmado em contra-plongée). Algo parecido também pode ser dito sobre como o primeiro enxerga o segundo. Oliver, um aluno de faculdade, tem dificuldades em mergulhar no mundo intelectual e admira a facilidade com que Elio consegue compreender enunciados truncados, formulá-los verbalmente e trafegar por diferentes expressões artísticas. Em outras palavras, apesar de buscarem coisas opostas, é por ver no outro algo que lhe é caro que os dois se apaixonam completamente (daí o título do filme).
Morte na Itália
Todavia, sob uma perspectiva mais ampla, essa subversão (a qual tem a ver com as diferenças entre as culturas helênica e helenística) ultrapassa o caráter mais pessoal do longa e também se mostra presente na reflexão filosófica que é feita acerca do amor homossexual. É sabido que a invasão de Alexandre Magno e as influências da cultura romana trocaram a espiritualidade e o idealismo do Classicismo pela materialização. No filme, isso se torna importante, já que uma relação entre dois homens (ou duas mulheres), tanto do ponto de vista simbólico quanto metafísico, se encerra nos momentos exatos em que seus corpos físicos perecem.
Em um texto famoso (e cuja essência também se encontra em “Morte em Veneza”), o romancista Thomas Mann compara a beleza (a qual ele via intrinsecamente ligada à homossexualidade) com a finitude, dizendo que a incapacidade física de gerar prole, ou seja, a esterilidade de tal relação, impede que um amor dessa natureza se insira no grande plano cósmico. Podemos estender esse raciocínio e afirmar que, pela ótica da doutrina cristã, o amor homossexual também não pode adquirir um caráter espiritual e ser consagrado à Deus, pois é visto como um pecado. O mesmo vale para outras religiões, como o judaísmo, várias vezes mencionado no filme e cujos membros matavam os homens que se deitavam juntos. Portanto, partindo dessa lógica, o que resta aos homossexuais senão gozar de tudo o que é físico, material e natural?
Talvez seja em razão disso que a lógica visual e a temática adotadas pelo roteiro de James Ivory e a direção de Guadagnino fazem uma imersão completa na natureza, entregando ao espectador uma orgia de corpos, rios, árvores, lagos, gramados etc (no estilo de Éric Rohmer). Durante a maior parte da narrativa, acompanhamos a ação através de planos abertos e conjuntos, o que nos permite ver as paisagens, os físicos dos personagens e a interação entre os dois (como a magnífica cena em que a batalha interna de Elio e Oliver é sinalizada pela praça de guerra no meio deles). Close-ups e planos e contra-planos nos embates verbais não são muito comuns e até causam um estranhamento quando aparecem (o que também acaba por empobrecer parte da mise-en-scène).
Contudo, é só quando a narrativa, em consequência das reviravoltas do roteiro, abraça essa concepção naturalista e começa a buscar o etéreo numa existência delimitada que o filme se torna uma verdadeira história de amor. Nessa redoma que é transcendida pelo Eros, o tempo passa a exercer um papel crucial na ordem dos eventos (o que justifica plenamente a cena em que descobrem uma raridade arqueológica) e dar à história todo o seu lirismo e poesia. É na passagem do verão e na vinda do inverno que se esconde o prazer e a tragicidade do sentimento mais puro que existe. Nesse misto de gozo e melancolia, a memória se torna o ideal abstrato, uma espécie de deus ao qual recorremos para conforto.
Dessa maneira, Me Chame Pelo Seu Nome consegue, através da arte e da força dos seus personagens, assim como dos sentimentos que estes carregam, não só comover com a sua bonita história de amor, como também possibilitar uma reflexão pertinente sobre o assunto, a qual interessou grandes artistas do passado e, ao que tudo indica, mantém o interesse nos dias de hoje. Além disso, foge sobremaneira dos temas que costumam aparecer em filmes sobre homossexualidade, como preconceito e identidade. E, por fim, para nos atermos ao coração do longa, uma vez diante da realidade descrita por Mann, imagino que tanto ele quanto os personagens, para justificarem o tamanho dos seus sentimentos, recorreriam aos eternos versos do poeta: “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.”. Quem haveria de negar que há beleza nisso tudo?