Sr. Mars encarna a dicotomia entre o homem moderno em um mundo pós-moderno
É difícil, para muitas pessoas mais “experientes”, viver no mundo moderno. É um mundo fragmentado, individualista, onde todos estão sempre em absoluta prontidão para apontar o erro alheio, mas raramente reconhecem os seus próprios. Philippe Mars (François Damiens) é alguém que tenta, com grande esforço, fugir à regra. Afável, gentil, compreensivo, tenta a todo custo ser um bom amigo, bom pai, bom ex-marido, bom cidadão. Mas é muito difícil ser um homem civilizado em tempos incivilizados. Essas são as tais Más Notícias para o Sr. Mars (Des nouvelles de la planète Mars, 2016).
A trama do filme é, de alguma forma, a emulação de alguns aspectos da famosa construção do chamado homem cordial, conforme imaginado pelo grande pensador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda. Embora a ideia tenha originalmente se desenhado sobre o brasileiro médio, ela pode ser extrapolada e aplicada ao contexto de outros cidadãos médios ao redor do mundo, principalmente o ocidental.
Sobre essa construção, eu deixo o próprio professor falar: “Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções”.
Eu mesmo não poderia explicar de maneira mais precisa como o Sr. Mars funciona. Afinal, trata-se de um homem cuja vida é dedicada a não atrapalhar os outros, contendo-se ao mínimo de demonstrações e extroversões possíveis para preservar sua ordem particular e pública. Quando o mundo era um lugar mais hierárquico e auto-contido, homens assim eram a regra, principalmente na Europa.
Entretanto, no mundo globalizado e fragmentado de hoje, onde tudo está tão perto, mas onde todos estão tão distantes, homens que se preocupam com as frivolidades sociais mais do que com sua expressão individual estão cada vez mais raros. Esse é Philippe Mars – uma pessoa que, por tanto tentar agradar a todos, acaba não tendo ninguém por perto.
Dominik Moll, diretor da peça e também escritor – junto com Gilles Marchand – desalinha os planetas para o Sr. Mars, confrontando-o com uma série de eventos inesperados que vão, aos poucos, minando sua paz e sua paciência. O evento número um é a chegada de seus dois filhos. Divorciado – como não poderia deixar de ser – Philippe não está acostumado a um período tão longo com seus filhos e o total despreparo do local em atender as necessidades das crianças escancara isso. As crianças, inteligentes e pseudo-politizadas, não poderiam ligar menos para o pai, um retrato típico da família moderna de classe média.
O evento número dois atende pelo nome de Jérôme (Vincent Macaigne). Um gênio que trabalha na mesma empresa de Philippe e só o conhece devido a tendência desse a uma pretensa diplomacia. O problema é que Jérôme é tão inteligente quanto é louco e suas inabilidades sociais levarão Philippe a ter problemas sérios com cutelos e com namoradas insanas.
Para completar, o total desprezo por parte da própria família, quando Philippe é literalmente forçado a ficar com o cão-peste de sua irmã Fabienne (Olivia Côte) enquanto esta viaja. Tudo isso para construir a imagem de um homem que está disposto a tudo para manter sua cordialidade – até mesmo sacrificar sua própria sanidade.
Velho problema – premissa vs. execução
A premissa do filme é interessante. Ela cria um crescendo, que impõe a Philippe um sem-número de situações absurdas, aos poucos – mas progressivamente – destruindo a ordem de sua vida particular. A não-resistência dele a essa progressão é desenhada não como uma espécie de “fardo” desse “homem cordial”, que o suporta estoicamente, mas sim como uma forma de hipocrisia social aceitável, em que ele vai aos poucos perdendo a paciência – até, inevitavelmente, explodir.
O problema aqui é o velho caso “premissa vs. execução”. Após a ideia ter sido apresentada, o filme se fixa na progressão do absurdo, até que se resolva de maneira frágil, acelerada e equivocada. Com a pretensão de fazer rir, Más Notícias para o Sr. Mars já trava nesse sentido antes mesmo do segundo ato – justamente porque o fundamento cômico do filme é repetido à exaustão.
Não obstante, há ainda a questão das sutis críticas sociais – sempre tão típicas do cinema europeu como um todo – mas que aqui criam um anti-clímax. A impressão é que o filme não consegue se decidir entre ser um drama sociológico, uma comédia pastelão ou uma obra non-sense. Para fazer uma analogia com o título original – transitando entre mundos diferentes, Sr. Mars acaba não encontrando o seu próprio.
Realmente uma pena, pois o elenco como um todo é ótimo e o conceito de contrastar um modo clássico de viver a vida como o do protagonista, com a globalização desvairada que o falecido Zygmunt Bauman tanto criticava, deveria dar uma boa sopa. Mas toda premissa precisa de um bom desenvolvimento de enredo e certos riscos em nome de uma perspectiva artística – como o fraquíssimo deus ex machina no final do filme – acabam solavancando a história, e prejudicando a narrativa. Às vezes, menos é mais.
Moll e Marchand já haviam sido responsáveis pelo elogiadíssimo Harry Chegou Para Ajudar, chamando a atenção da crítica para um roteiro ágil, com uma execução sutil. Aqui, ao tentar repetir essa fórmula com novas cores, acabaram entregando uma obra mediana, que entretém e faz refletir em doses apenas moderadas. Em uma próxima oportunidade, talvez a ousadia que faltou em Más Notícias para o Sr. Mars possa ajudar a criar uma obra mais memorável, pois essa dificilmente chama a atenção.
No final das contas, o Sr. Mars não tem nada de outro mundo.