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Maresia – A autenticidade do Cinema e da Arte como um todo!

Maresia

Não há liberdade sem que todos os poros da existência sejam preenchidos pela autenticidade. Eis a premissa básica de Maresia, longa de estreia de Marcos Guttmann, que, a  partir de duas histórias separadas no tempo, constrói uma reflexão sobre a autenticidade da arte e a autenticidade do saber.

Gaspar Dias (Julio Andrade) é um obsessivo estudioso da obra de Emílio Vega (Júlio Andrade). Ao receber a visita do ancião Inácio Cabrera (Pietro Mario) para a autenticação do quadro do pintor, Gaspar afirma que o quadro é falso, mas, para seu espanto, recebe a informação de que o pintor e o idoso mantiveram uma amizade no passado. Desde então, a narrativa se mescla com passado e futuro, falso e verdadeiro.

Maresia

Guttmann, já no início, nos demonstra domínio sobre o que quer narrar ao estabelecer em simples tomadas o paralelo entre Gaspar e Emílio a partir da relação do dois com o mar. Assim, uma informação de que a narrativa será híbrida temporalmente se faz de forma singela, sem complicações, situando o espectador de imediato, algo que muitos outros diretores se complicariam em fazer ou sinalizariam de forma verbal. Por todo desenrolar, as idas e vindas temporais não se fazem com cortes bruscos e esta fluidez vai ao encontro de todos os aspectos estéticos do filme.

O trabalho de fotografia de Alexandre Ramos age de forma sintônica em relação à temática do filme e suas histórias paralelas. As cores e o tom, no enredo de Emílio Vega, coadunam com as características de seus quadros. Uma mostra de que a arte do pintor é o seu viver, o seu estar no mundo. Quando a narrativa se transporta para o mundo de Gaspar, cores mais frias e soturnas se prevalecem. Por mais que o acadêmico se sinta iluminado com o saber sobre a vida e obra do pintor, a fotografia na locação da galeria em que trabalha é um aviso de que há muito mais mistérios sobre Emílio Vega, os quais ele sequer imagina.

Mas de nada adiantaria a estética se não fosse a aula de interpretação que Julio Andrade nos dá. Um espectador que vá ao filme sem ler a sinopse (como no caso deste crítico) demorará a perceber que os dois personagens centrais são interpretados pelo mesmo ator. A começar pela aparência e trejeito, Emilío Vega em muitos momentos se faz parecer gigante, de olhar absorto cuja barba ajuda a construir uma face de artista a olhar ao mundo no intuito de arrebatá-lo para si, desesperadamente. Já Gaspar Dias, de voz determinada e um olhar soberano, com seu jeito franzino, balança diante das dúvidas que lhe cercam, a partir de fatos da vida do pintor que lhe escapam. A performance de Julio Andrade se firma como uma das melhores do ano, ao lado de Sônia Braga, em Aquarius, e Viggo Mortensen, em Capitão Fantástico.

Maresia

Todo este conjunto faz de Maresia uma narrativa de singeleza complexa. A questão do duplo sempre foi um tema abordado pela arte. Aqui, Guttmann não foge à regra dos grandes clássicos sobre o tema. Ao optar pelo mesmo ator para os dois papéis, ele não se envereda pelo senso comum de uma psicologia em que o ser que cultua, no caso de Gaspar, deseja ser o objeto cultuado, Vega. A problemática se faz com a necessidade de se verificar a autenticidade de cada um, do pintor e da pintura, do acadêmico e do saber, da vida e da morte, do presente e do passado, do cinema e do espectador. O plot twist do filme não é incomum para o tipo de tema, mas se faz de forma magistral, justamente pelo filme não possuir um ritmo frenético, que – muitas vezes – tal tema exige. E assim, Guttmann nos faz rir de nós mesmos, já que percebemos que estávamos a praticar a mesma petulante arrogância de Gaspar.

Maresia é um filme leve, mas denso, simples, porém poético, modesto, só que complexo. E coloca Marcos Guttmann como a grande revelação do ano. Um diretor de futuro promissor que nos dá mais um belo quadro a compor a excelente galeria do cinema brasileiro de 2016.

Abaixo do trailer, você confere as entrevistas que Marcos Guttman e Julio Andrade concederam ao Formiga Elétrica!

Marcos Guttmann

Formiga Elétrica: O filme é adaptado a partir do romance Barco a Seco, de Rubens Figueiredo. Como você vê essa relação entre Cinema e Literatura?

Marcos Guttmann: O cinema brasileiro tem uma tradição grande de adaptação literária e eu era muito crítico em relação a isto. Os meus quatro curtas sempre foram roteiros originais e eu, com alguns amigos, queríamos desenvolver um roteiro sobre a autenticidade de uma obra de arte. Escrevemos um roteiro chamado Natureza Morta, mas nunca ficou bom. Quando li o livro, comprei a ideia automaticamente e, antes de terminá-lo, já comecei a adaptar. O livro tem muito de cinematográfico a partir de seus ganchos, um capítulo termina como um gancho para o outro. E a alternância dos personagens. Mas são duas obras distintas e autônomas, o Rubens Figueiredo nunca interferiu e até quando fui pedir a opinião dele para  roteiro ele se esquivou de todas as formas, mas fiquei satisfeito com o fato dele ter gostado muito do filme.

Formiga Elétrica: E a relação com a pintura? O que notei é que a fotografia de cores vivas combina com o próprio estilo do Vega. Como isso foi estudado e pesquisado?

Marcos Guttmann: Tudo foi integrado e estudado. A pintura do Vega nós estudamos muito. Achar o pintor foi um casting difícil e demorado. Houve vários testes para chegar no Milton Eulálio. Fomos à casa dele, havia vários livros e estudos e debatemos para se chegar em um consenso de como seria o estilo dos quadros. Pois já se tinha a ideia da fotografia do filme.

Formiga Elétrica: Os seus curtas abordam a autonomia do indivíduo e a questão do acaso, que não se pontuam como um Deus Ex Machina (termo para designar atalhos de roteiro). Os personagens de Maresia, Gaspar e Vega, se preocupam com o controle e autonomia de suas áreas. Como você relaciona esta abordagem com a sua experiência como diretor?

Marcos Guttmann: Há uma burocracia cotidiana para se conseguir fazer um filme. Quando eu já tinha patrocínio da Petrobrás e da Oi, eu quase perdi o projeto por causa do tempo de captação e da burocracia da ANCINE. Foi uma diretora lá que me ajudou a conduzir de uma forma a conseguir viabilizar o projeto. Reduzimos o orçamento e o fundo setorial entrou com a diferença. É uma luta conseguir, uma batalha minha burocrática e isto não é a produção artística. É algo inerente à produção cinematográfica. O diretor quer sentar na cadeira e já dizer “Ação!”, mas tem que ficar correndo atrás dessas burocracias. O fato de acumular as duas coisas gera o tempo todo um conflito interno. Eu adoraria ter que cuidar menos da parte burocrática. Tanto que no próximo filme eu serei produtor minoritário, quero me concentrar na parte artística. A gente vive essa dualidade.

Julio Andrade

Formiga Elétrica: Como a temática do filme é o duplo, como foi sua preparação para ele?

Julio Andrade: Os personagens são muitos opostos. E o que me pegou para fazer o filme foi o Vega, esse cara maluco, visceral, que pega as vísceras do peixe, faz pigmentação e joga no bacalhau. O Gaspar era interessante também, mas eu queria viver o Vega. Só que tinha um porém, eu não sabia nadar. Eu pensei, “eu minto para o Marcos?”. Ele foi conversar comigo, e eu falei que adorei os personagens, mas eu não sabia nadar. O Marcos disse que era uma pena, fica para a próxima. Mas uma semana depois ele me ligou perguntando se eu não queria aprender a nadar. Eu tinha de perder o trauma, e foi um desafio a mais para mim. Então, eu vivi o Vega, como se o Gaspar não existisse. Depois que filmei todas as tomadas com o Vega, depois de raspar a barba, fui viver o Gaspar. Mas só o Vega daria um bom filme.

Formiga Elétrica: Essa questão da visceralidade do Vega e da autonomia do Gaspar é base do filme. Você consegue relacionar isto com a sua carreira?

Júlio Andrade: Eu tenho muito do Vega. A Filosofia de vida dela é a contemplação, ela vive naquele universo e vive aquilo. Ele poderia ser outra coisa, mas vive a sua arte. E sobrevive dela. Eu sou a mesma coisa, eu quero pintar os meus quadros. Não quero luxo, lancha, iate, eu quero o suficiente para sobreviver. O que movia ele era a arte do pincel. Eu tenho essa autonomia de fazer minhas escolhas. Eu não gosto de patrão, ninguém mandando em mim. Quando um diretor me procura, eu digo “cara, nós vamos abraçar, estou com você, mas não pense que vai me mandar fazer qualquer coisa, que eu não vou”. Eu sempre estou no set, participo de todas as etapas possíveis. Sou curioso, me alimento daquilo o tempo todo. Isso me faz ser igual ao Vega.

Formiga Elétrica: Esta liberdade custou muito caro para você?

Julio Andrade: Não, cara. Não tive muitos problemas não. Assim, fui morar sozinho com 18 anos, comi miojo. mas não sofri nada. Tem gente que sofre muito mais. Fui fazer festa de aniversário, teatro de rua, palhacinho nas feiras, até chá de fraldas eu fiz, fui metendo a cara. Fiz filme pra ajudar os caras e aprender. E é engraçado, eu vibrava quando tinha uma cena só num filme, hoje o que mais faço é negar trabalho. Antes, eu queria apenas fazer um protagonista, não para ficar famoso, mas para filmar mais, ficar sonhando com a cena, saber que no outro dia tinha mais cenas para fazer, tinha mais um mês de filmagem. E com Cão Sem Dono (2007, Beto Brant e Renato Ciasca) foi um delírio na minha vida, abria qualquer página e estava lá, Ciro, Ciro, Ciro. Isso foi o maior presente para mim. Essa semente que venho plantando é de muito tempo e estou colhendo agora. Isso tem tudo a ver com liberdade.

Formiga Elétrica: Como você está vendo o momento atual do cinema brasileiro e esta questão política, que culminou no término do MINC?

Júlio Andrade: O ano foi muito bom para o cinema brasileiro. Estamos preocupado com o momento político, a arte não pode ser deletada, nem desrespeitada, porque é tão importante quanto a política. A arte, na verdade, é política também. Ela salva e salva muita gente. Eu tenho um filho de um ano e oito meses e estou criando para que ele faça a diferença, que não seja mais um. Quando é dia das crianças, eu não dou presentes a ele, quero ensinar a ele que a vida é um presente, a convivência, o amor ao próximo. As pessoas estão muito individualistas, votam num cara só porque ele vai aumentar a velocidade das marginais. E do outro lado, tem muita gente que fala, mas não faz. A gente que é artista, a gente faz política todos os dias. A gente pode não mudar o mundo, mas mudar nossa tribo. A gente tem que estreitar as relações, amar o próximo. O momento que estamos vivendo, por pior que ele seja, é maravilhoso, pois as pessoas estão falando sobre política. O problema é que somos uma minoria, não conseguimos chegar às massas ainda. A gente como ator, como artista, tem o dever de expressar nossa opinião e se ela servir para alguém, é algo bacana.

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