Em 1976, com uma desculpa muito parecida com a usada aqui no Brasil para os mesmos fins, teve início a ditadura militar argentina, que durou até 83. É necessário especificar seu período, pois, tal qual quase todos os países da América latina – aí incluso novamente o Brasil – nossos hermanos passaram por não apenas um, mas diversos períodos de repressão a sua democracia. Da mesma forma, os opressores portenhos seguiram o mesmo modus operandi de qualquer outro assassino das liberdades individuais – perseguições, torturas, mortes e, la pièce de resistance de qualquer ditadura demagógica – quando as mortes não podiam ser “justificadas” – os tais “desaparecimentos”. É nesse período que se passa o novo filme estrelado por Ricardo Darín, Kóblic (idem).
O protagonista, Tomás Kóblic, é um ex-piloto das Forças Armadas argentinas. Ele deserta após ser obrigado a participar de um dos chamados “voos da morte”, em que a ditadura argentina, em uma das maneiras mais repulsivas imagináveis, assassinava pessoas em pleno voo e descartava seus corpos sobre o Rio da Prata ou sobre o mar para que não pudessem ser encontrados. Com isso, o amigo leitor já pode deduzir que não se trata de um filme que vai arrancar muitos sorrisos de seus espectadores.
O personagem é profundamente marcado pelo evento e, sendo um desertor, se fosse capturado ele seria obviamente morto. É aí que ele decide fugir para um pequeno condado no interior argentino, chamado Colonia Elena, onde finge trabalhar com pulverização de campos de flores. Entretanto, em um lugar tão pequeno, onde todos sabem tudo sobre todos, Kóblic criará relações que podem colocá-lo em perigo.
O amigo leitor precisa entender que, no caso deste filme, o contexto histórico é importante. E aí nós temos um primeiro problema. Para o espectador que não está familiarizado com a história argentina – e isso não é exatamente um pecado – fica difícil entender toda a tensão e a profundidade do personagem de Darín. E o filme, que gira totalmente em torno do ponto de vista particular de Kóblic sobre o desenvolvimento dos eventos, não colabora nem um pouco nesse sentido, não nos entregando quase nada de contexto para que possamos entender o que aconteceu e porque o protagonista se comporta daquela forma. É claro que é deixado explícito desde o início que algo traumático aconteceu a ele, mas a plena compreensão do horror que ele presenciou potencializa esse efeito, e a falta de contexto histórico do espectador pode prejudicar esse aspecto do filme.
Ademais, o roteiro em si é relativamente simples. É basicamente o arquétipo do homem solitário e misterioso que chega à uma pequena cidade causando enorme comoção pela sua mera presença. Se formos atrevidos e esticarmos a interpretação do filme, daria para dizer que ele se assemelha em muitos aspectos a um faroeste – com direito até mesmo a um duelo final. Como dissemos, é um filme que gira basicamente em torno de seu protagonista. E, obviamente, ele não poderia ser melhor.
Ricardo Darín caminha a passos largos para se tornar o maior nome da história do cinema argentino, e isso não é pouca coisa. O ator assume a responsabilidade sobre o filme, e mesmo encarnando um homem introspectivo e de poucas palavras, ele consegue carregar uma boa parte da obra sozinho. Suas expressões são profundas, e seu olhar dirigido a câmera transmitem toda a tensão dentro de si, dando-nos a impressão que algo sempre está prestes a acontecer – nada mais apropriado para um homem perseguido e jurado de morte.
Quando não está focado em seu protagonista, o filme se constrói nas relações entre seus coadjuvantes – principalmente a bela Nancy (Inma Cuesta), seu interesse romântico e responsável por uma das revelações mais chocantes do filme; seu protegido e protetor, o jovem Luis (Marcos Cartoy Diaz); e o delegado Velarde (Oscar Martinez), seu opositor na pequena vila.
Velarde é um tipo desprezível, brilhantemente construído por Martinez para ser odiado. Ele não é um vilão unidimensional – ele encarna um dos tipos mais cruelmente realistas que nós conseguimos encontrar em qualquer regime brutal e opressor: aquele que “só está fazendo seu trabalho”. A ele, pouco importa o que acontece fora da conjuntura da sua pequena jurisdição, desde que ele mantenha o controle ali, seja pela lábia, seja pela mão de ferro. Sua relação com Kóblic não poderia ser mais simples, mas ao mesmo tempo intensa – começa por acaso e de maneira frívola, termina de maneira diametralmente oposta. Mesmo que Darín seja, com justiça a grande estrela da produção, o Velarde do veterano Martinez não deixa nada a desejar em potência.
E isso não é exatamente tirar o mérito do diretor Sebastián Borensztein. O estilo escolhido por ele para o filme permite aos atores crescerem – mas cabe aqui questionar até onde isso de fato é uma escolha e onde os atores começam a carregar o filme sozinhos. Porque, como dissemos, o roteiro não tem nada de excepcional – sua estrutura é basicamente a de um faroeste aplicada a um momento histórico específico da argentina.
E dentro desse aspecto, também cabe ressaltar a coragem do diretor em retratar de maneira explícita, pela primeira vez no cinema portenho, um desses “voos da morte” – é obviamente um tema delicado e doloroso para a memória dos hermanos, assim como são também muitas lembranças da nossa própria ditadura para nós. Mas Borensztein consegue retrata-lo da maneira mais apropriada possível, causando o choque e a comoção necessários para o envolvimento com o personagem, sem abusar da memória, evitando ofender muitos que podem ser diretamente afetados por ela. Na verdade, a própria escolha do filtro com a qual a lembrança é apresentada ajuda a diminuir um pouco o impacto da imagem, sem diminuir sua importância. Ponto para o diretor.
Além desse mérito, há também os do filme em si – ele transita facilmente entre o drama e o suspense, sem perder força. A escolha pontual do diretor por planos-sequência para construir alguns momentos de tensão, assim como a bela fotografia fria usada na ambientação da pequena Colonia Elena, também demonstra sobriedade e parcimônia no uso de recursos cinematográficos, não permitindo que o filme se sobreponha à extensão de seus talentos. O resultado é uma obra que estruturalmente lembra um faroeste, mas com uma ambientação que lembra um noir. E tudo isso de maneira orgânica, sem ser forçado ao espectador. Vencedor do Goya em 2011 por Um Cuento Chino, aparentemente, deslumbre não é um mal que afeta Borensztein.
Isso não significa que o filme não tenha problemas, e o maior deles nós já mencionamos – o roteiro. E esse vai para a conta de Alejandro Ocon e… o próprio Borensztein. Não é somente a questão do contexto histórico, mencionado no início da crítica, ou da simplicidade às vezes demasiada do roteiro. Muitas circunstâncias acabam se resolvendo muito rápido e de maneira abrupta, existindo um desequilíbrio em certas cenas, que se estendem por tempo demais sem contribuir para o desenvolvimento do filme, e outras que seriam mais importantes e que se encerram de repente. Não chega a ser um problema grave de decupagem – mas esse filme, com seus 105 minutos, poderia cair para 90 facilmente, sem prejudicar em nada seu desenvolvimento.
Kóblic é um belo filme, apesar de alguns problemas pontuais. Parcialmente pelo talento indiscutível do monstro que é Darín, mas principalmente pela coragem de tocar em um ponto extremamente delicado da história argentina de maneira relativamente inusitada – lá, tal como aqui, muito se mostra do ponto de vista das vítimas, mas quase nunca do ponto de vista dos “vitimizadores”. Perceba, amigo leitor, que aqui eu evito usar a palavra “culpado”, pois estou seguindo a lógica do filme – regimes que oprimem um país inteiro não dependem apenas de mentes inescrupulosas e, em última instância, malignas como a dos próprios ditadores.
Elas dependem muito também daqueles que, como eu ou você, estão “apenas fazendo o seu trabalho”.