Einstein certa vez disse que “existe uma razão muito simples para a existência do tempo: para que tudo não venha a ser de uma única vez”. Uma afirmação um tanto óbvia, mas digna de reflexão. O tempo permite as coisas surgirem, se desenvolverem e desaparecerem. Ele é a mola mestra da existência e, consequentemente, da consciência humana, permitindo-nos fazer escolhas e acompanhar o seu desenrolar. O tempo nos traz perspectiva e esclarecimento. No decorrer de nossas vidas, a liberdade que nos é inerente e o contexto que nos cerca nem sempre permite que possamos compreender com precisão os rumos que determinamos para nós mesmos. Muitas vezes, somos confrontados por certas coisas quando escolhemos o caminho que queremos para esquecê-las ou abandoná-las.
Julieta (idem) é um Almodóvar menor, mas afirmar isso é uma questão de referência. Trabalhos menos surpreendentes de alguns seriam a glória de uma vida para outros. Assim, esta obra que chamamos de menor, ainda assim, é bastante intrigante – inicialmente, por ser uma adaptação de três contos inter-relacionados da autora canadense Alice Munro, vencedora do Nobel de Literatura, publicados originalmente na coleção Runaway.
O filme traz de volta, de maneira sutil e bastante elegante, todo o imenso repertório de metáforas e reflexões particulares do diretor, circundando ideias sobre memória, perda e a ânsia da existência. Este filme, que em determinados momentos parece sair de si próprio, no sentido mais transcendental da expressão, desvela seus segredos aos poucos, através de ferramentas simples, mas usadas de forma pontual e precisa, como flashbacks, cartas e jornais. É um filme em que coisas extremamente importantes acontecem longe das câmeras, incluindo revelações nevrálgicas que são simplesmente postas à trama: não muito diferentes dos eventos de nossas próprias vidas, em que reviravoltas acontecem quase sempre sem serem anunciadas.
Ele é todo sobre pais e filhos, sobre as inexoráveis transformações pelas quais passamos em nossas vidas, sobre as circunstâncias particulares que pesam sobre nossos ombros como o próprio mundo, além de como a eterna sombra da morte traz agudeza à nossa percepção de todos esses elementos. Sendo Pedro Almodóvar, as palavras são sutis quando contrastadas como imagens ponderosas. Sua paleta visual é rica e suntuosa, suas cores são vivas e pulsantes, seguindo a melhor tradição da arte espanhola.
O filme conta a história de Julieta, uma mulher que de alguma forma foi marginalizada pela sua própria vida. Nos seus anos mais maduros e experientes, ela é interpretada pela competente Emma Suárez, enquanto sua versão jovem e vívida é encarnada pela estupidamente bela Adriana Uguarte. Começamos com ela em um momento relativamente feliz e satisfeito, prestes a deixar a Espanha para começar uma vida nova em Portugal, ao lado de seu parceiro Lorenzo, interpretado por um velho conhecido do diretor, Dario Grandinetti. Mas um encontro completamente ao acaso na rua destroça a frágil consciência de sua própria felicidade. Ela descobre que sua filha Antia (Blanca Parés), há muito tempo voluntariamente desaparecida, está viva; ela foi vista por Beatriz (Michelle Jenner), uma antiga amiga de infância e, não bastasse o choque dessa informação, Julieta ainda descobre ser avó de três crianças.
Em seu redescoberto, e agora ainda mais inflamado, estado de angústia, Julieta abandona brutalmente seu novo relacionamento e a possibilidade de uma nova vida em Portugal. Ela retorna ao antigo prédio onde morava, e, em um apartamento tão solitário e vazio quanto o seu agora aspecto interior, ela escreve uma longa e impiedosa carta, descrevendo as delícias e agruras de seu relacionamento com o falecido pai de Antia, Xoan (Daniel Grao) – um homem simples, em todas as acepções do termo; sua complexa relação de amizade com a intermitente amante de Xoan, Ava (Inma Cuesta); além de sua tensa relação com a formidável, ainda que reprovadora, governanta de Xoan, Marian, trazida à vida por outra grande e recorrente parceira de Almodóvar, o ícone espanhol Rossy De Palma. A intensa dinâmica entre esses personagens cria a tempestade emocional perfeita, que vai selar o destino de Xoan. Incidentalmente, uma tempestade tão real quanto poderia ser.
Julieta, assim como – não poderia deixar de ser – sua filha Antia, são personagens essencialmente existencialistas. Mais no sentido kierkegaardiano do que sartreano, pois a angústia de suas existências é menos oriunda do peso da liberdade essencialmente humana, e mais dos obstáculos que elas próprias impõem sobre suas vidas; ao tentar escolher preservar uma a outra do sofrimento, acabam por aumentá-lo exponencialmente. Julieta tenta preservar sua filha dos erros que acredita que seus pais realizaram e de que alguma forma são origem de antigos sofrimentos; Antia – incidentalmente, uma brincadeira com o nome da princesa grega que injustamente acusara Belerofonte – busca preservar sua mãe de acusações como ser responsável pela morte do seu pai, mesmo que não consiga evitar essa ideia. Os existencialistas explicam por que algumas pessoas se sentem atraídas à passividade moral, baseando-se no desafio de tomar decisões. Seguir ordens é fácil; requer pouco esforço emocional e intelectual fazer o que lhe mandam. Mas a grande tragédia da escolha, aquela em que incorrem Julieta e Antia, não é muito mais catártica.
Esta é uma intrigante e dolorosa história de grande veemência dramática. Mas estamos falando de Almodóvar. Seus filmes são como as famigeradas salas de espelho – quase nada é o que realmente parece. Os antigos formalistas russos diziam que a função da arte era nos colocar sempre um movimento à frente da realidade. O cineasta, mimeticamente, se delicia em nos colocar um movimento atrás do que está acontecendo em Julieta. É envolvente na mesma medida em que é desconcertante.
As atuações de Suárez e Uguarte são, ao melhor estilo latino, abertas e generosas – a câmera do diretor valoriza continuamente suas expressões intensas, ricas e cheias de emoção. Incidentalmente, as vidas emocionais, tanto jovem quanto mais madura, de Julieta são no mínimo tempestuosas, para usar uma analogia anterior. Em determinados momentos, os personagens parecem estar em um thriller de Hitchcock – intencionalmente, o personagem Lorenzo abertamente compara, em determinado momento, o seu comportamento ao de um personagem obsessivo de Patricia Highsmith.
Almodóvar é quase incomparável no que toca a criar um clima de mistério, mas sem qualquer intenção de nos dar a grande revelação pela qual esperamos – A Pele que Habito, mais do que qualquer outra de suas obras, atesta isso. O grande mistério do cerne do filme é justamente a própria Antia – é uma ausência que paira de forma perene – mas incômoda e aguda o bastante – e a estrutura do filme criada pelo diretor é uma maneira inteligente de nos aproximar desse sentimento devastador de perda e culpa que Julieta carrega. Julieta priva Antia do sofrimento na expectativa de que ela nunca sofra – Antia acaba, pelo mesmo motivo, por privar sua mãe de si mesma e é exatamente esta privação a origem de toda a angústia de Julieta. É uma perspectiva dolorosa e melodramática do ciclo perpétuo entre pais e filhos. Sempre esperamos que nossos genitores tenham a compreensão absoluta das nossas escolhas e dos erros que cometemos por causa deles; apenas para, na maturidade, percebermos que nossos pais são tão falíveis quanto nós mesmos.
O mais conhecido de todos os existencialistas, Sartre, dizia que “o inferno são os outros”. O que acontece quando os outros são uma parte de nós mesmos?