Não há auto-consciência em Jogador Nº1
É curioso que o diretor de Jogador Nº1 (Ready Player One) seja Steven Spielberg (de The Post: A Guerra Secreta e O Bom Gigante Amigo). Depois de consolidar a visão atual que temos dos chamados “arrasa quarteirões” com o lançamento de Tubarão em 1975 e, assim, dar o pontapé inicial de uma série de filmes marcados pelo tom de aventura, pelo caráter mais infantilizado e pela presença de efeitos especiais, ele retomou o seu espírito juvenil para realizar uma obra que reúne quase todos os blockbusters feitos nas últimas quatro décadas, ao mesmo tempo que contém algumas das tecnologias que definirão o cinema nos próximos anos.
(Confira o Formiga na Cabine sobre o filme)
No entanto, não há por parte do diretor nenhuma espécie de reflexão ou postura crítica diante do legado que deixou para trás. Em um filme em que a própria carreira de Spielberg se reflete, era de se esperar que houvesse alguma observação acerca dos pontos positivos e negativos dessa “cultura dos blockbusters”, a qual ele criou e alimentou ao longo dos anos. Perto do final, até há uma mensagem interessada em alertar os jovens dos perigos do escapismo (o que também é reforçado pelo personagem interpretado por Mark Rylance, que pode ser um alter-ego culposo de Spielberg), mas a fantasia é abraçada tão veementemente pelo cineasta que o tiro acaba saindo pela culatra.
Vale também mencionar que a realidade virtual (um dos possíveis futuros da Sétima Arte) e junção do cinema com os jogos de videogame são elementos fortemente introduzidos na trama e que, assim como a atividade nostálgica, surgem superficialmente, como se fossem meros recursos empregados momentaneamente por um determinado realizador (quando sabemos que a tendência é que essas coisas apareçam cada vez mais). Não há vida inteligente em Jogador Nº1. A impressão é a de que Spielberg evitou qualquer tipo de mea culpa ou não enxergou a posição crucial que o seu novo filme exerce na história recente do cinema (uma falha ainda mais grave).
(O livro que deu origem a Jogador Nº1 está à venda na Amazon)
Referências e mais referências
Tudo o que existe são símbolos visuais e verbais presentes apenas através de seus aspectos externos. Ao longo da narrativa, vemos e ouvimos brincadeiras com filmes, jogos e personagens clássicos, mas elas sempre aparecem sem propósito narrativo ou esvaziadas de seu conteúdo original. É a referência pela referência. Isso acaba indo na direção contrária da intenção congratulatória, uma vez que desprover algo de sua essência é desmerecê-lo automaticamente. Dessa maneira, tanto a mensagem anti-escapista quanto a homenagem à “cultura pop” (na falta de uma expressão melhor) são inócuas.
Frente a essa ineficiência temática, não restava nada senão mergulhar nas características mais imediatas da trama. Não é à toa que tudo é exacerbado em Jogador Nº1. Há excesso de cores, personagens, objetos, paisagens e barulhos. Ou seja, na falta do que dizer, mantenha as pessoas entorpecidas. Além disso, a câmera de Spielberg não para de passear pelos ambientes. A história, que sempre está se desenrolando em fases — um dos poucos méritos do filme –, acaba por oferecer essa movimentação constante, o que deixa a narrativa cansativa e exagerada. Como não poderia deixar de ser, os personagens e o nosso envolvimento emocional com eles são rapidamente sacrificados.
Sendo assim, é difícil não achar que, após ajudar a formar um grupo de espectadores interessados apenas no que há de mais superficial no cinema (mesmo quando são filmes bem feitos e divertidos) e ver que as novas tecnologias e a onda nostálgica dos dias atuais (envolvendo os anos 1980, principalmente) formaram um tipo específico de público, Spielberg está apenas interessado em dar às pessoas o que elas querem, mesmo que isso origine a produção de filmes tão rasos quanto Jogador Nº1. Quem imaginava que Spielberg se tornaria, um dia, o vilão dessa história?!