Hellboy sofre por ser ruim e pela comparação, mas existe coisa pior
São conhecidos todos os problemas de bastidores que impediram Guillermo del Toro de oferecer um desfecho digno para a sua passagem por Hellboy Os dois primeiros filmes dividem a opinião de fãs do personagem em termos de fidelidade e adaptação, mas é inegável que ambos sejam bem produzidos e extremamente carismáticos. São aquele tipo de filme que tinha tudo pra dar errado, mas funcionam porque são extremamente honestos consigo mesmos. A versão de Neil Marshall (Hellboy, 2019) parece sofrer do inverso: é uma proposta mais fiel ao espírito da HQ, mas de execução completamente bagunçada.
Mas primeiro, aquelas considerações de contextualização. Muito se disse, principalmente por conta das críticas na gringa, que é um dos “piores filmes de heróis”, “uma ofensa”, blablabla. Existe uma piada recorrente dentro do Formiga de que este colunista é um grande “passador de pano” para filmes ruins. Não deixa de ser verdade, mas por um único motivo: a enorme média dos filmes recentes de heróis, adaptações de quadrinhos, blockbusters, etc, varia, no máximo, no espectro de “ruinzinho” para “bonzinho”. Simplesmente não dá vontade de fazer muito esforço para gostar ou odiar. O problema é que as mídias sociais, esse paquiderme coletivo afetado por enorme retardo moral e mental, tem essa necessidade mórbida de, toda semana, eleger o pior e o melhor filme de todos os tempos – uma variação do nefasto movimento que tenta equivaler opinião à informação.
Mas isso é uma enorme bobagem. E assim como um Vingadores está longe de ser a obra-prima que gente sem nenhuma referência celebra, Hellboy está muito longe de ser a calamidade que todos alegam. É um filme bobo. Só isso. Que sofre muito mais pela comparação com as versões do Del Toro do que com sua ruindade inerente. Simplesmente não tem o que é necessário para ser “abominável”. Isso levando em consideração que estes sequer foram o sucesso comercial que nossas memórias afetivas nos fazem pensar. É um fato que a versão de Marshall perde em praticamente todos os quesitos dessa comparação – mas não é muito pior, por exemplo, do que muita tralha que Marvel e DC lançaram em meio às suas dezenas de filmes genéricos.
Dois parágrafos perdidos tendo que explicar o óbvio, foquemo-nos no filme. David Harbour é um protagonista voluntarioso, mas talvez a falta de talento e o excesso de maquiagem o tornam em muitos momentos algo de irritante. É quase sempre incompreensível o que está se passando debaixo daquelas próteses, e o ator tenta compensar isso aos berros – literalmente. Seus coadjuvantes não ajudam em nada. Tanto Alice Monaghan quanto Daniel Dae Kim parecem ter em mente que estão atuando para algum tipo de home video, tentando entregar alguma emoção, mas sem muito esforço. A vilã de Milla Jovovich… bem, está lá.
Mas a diferença mais gritante está no Professor Broom de Ian McShane. É de se ponderar como um ator desse calibre se mete nessas enrascadas. Seu personagem aparece substancialmente mais do que a versão de Del Toro, mas não consegue não ser eclipsado pela versão mais gentil e orgânica de John Hurt. É falastrão, solta palavrões e tenta se impor na base do grito e da violência verbal e física. Percebem um padrão? A diferença entre os Broom é um grande termômetro para a diferença entre as duas versões: a de Marshall tenta ser mais visceral, violenta – pretensamente ousada – e próxima das HQs, incorrendo num erro que a indústria cinematográfica parece se recusar a assimilar: quadrinho não é storyboard pronto para produtor preguiçoso.
É uma linguagem distinta. Transpor sem entender dá errado. Del Toro entendia isso – contra a vontade do criador Mike Mignola. Neil Marshall não – com a anuência de Mignola. Porque Mignola, como cineasta, é um excelente quadrinista. E deu nisso: uma tentativa de quase duas horas de tentar corrigir o que não precisava ser corrigido na base de sangue e tripas. Mesmo no aspecto técnico, há um decréscimo de qualidade: apelando para efeitos especiais pesadíssimos – outro abandono em relação à Del Toro e seus magníficos efeitos práticos – tudo parece pesadamente artificial. Mesmo os efeitos e fotografia feitos em tomadas noturnas, um velho “migué” para encobrir a dificuldade de realizar um CGI crível, parecem ter sido feito às pressas.
E mesmo a história, mais próxima das HQs, é executada de uma tal forma que nem parece querer esconder que é uma “cópia e cola” do “manual do herói predestinado”. Mesmo a Marvel tem um mínimo de dignidade para tentar esconder que usa os mesmos 3 roteiros há 22 filmes. É difícil entender como alguém tão protecionista como Mignola tenha permitido uma adaptação tão boba quanto essa, e brigado com a outra. Nada em Hellboy oferece um mínimo de tensão ou envolvimento. Toda a narrativa é mastigada e vomitada para o espectador desde o início, e qualquer nuance que pudesse promover um pouco mais de complexidade para a trama – como alguns detalhes da sua origem e destino manifesto – são prontamente descartados para favorecer mais sangue e mais tripas. O personagem, nos quadrinhos, não é necessariamente um grande arroubo de criatividade ou técnica literária, mas é extremamente divertido e carismático porque tem uma identidade própria.
Dessa forma, Hellboy é um filme mais do que dispensável – embora ainda seja útil se você quiser desligar o cérebro e curtir a pancadaria. Não é o pior filme de todos os tempos, e dificilmente vai ser sequer o pior filme do seu mês de lançamento. Ele é nada. Insosso. Esquecível. Indigno do esforço de odiá-lo ou amá-lo.
Curiosamente, uma descrição que usaria para 90% dos blockbusters recentes. O pano que eu passo é bem longo…