O filme Valerian poderia ser um marco se adaptasse os quadrinhos… Besson achou melhor não!
A HQ Valerian é um dos marcos da nona arte, mas de conhecimento restrito quase que somente aos admiradores dessa. Como nós dedicamos um Formiga na Tela para explicar o quão importante e impressionante é esse quadrinho, junto de seu contexto histórico, vou me permitir restringir-me apenas ao filme Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (Valerian and the City of a Thousand Planets) nesta crítica.
(Confira também o Formiga na Cabine sobre o filme)
Uma pena, pois o filme de Luc Besson ressona quase nada do material original – o que torna a película um imenso desperdício por inúmeros motivos. Besson não é um cineasta ruim; mas possui qualidades específicas. Qualidades essas que não combinam muito quando se exige maior delicadeza e atenção a detalhes conceituais e narrativos.
O que é um eufemismo para dizer que Besson é um bom diretor de ação e efeitos especiais, mas peca fenomenalmente quando precisa dar conteúdo e alguma sofisticação narrativa para suas obras. Lucy talvez seja o caso mais emblemático nesse sentido – o que era para ser uma ficção científica que explora os limites da condição humana, acabou se tornando um festival de pancadaria, com Besson desfilando todo seu fetichismo por figuras de ninfetas; um padrão que se segue desde Milla Jovovich em Quinto Elemento, e que se repete em Valerian com Cara Delevingne.
Padrão esse que, incidentalmente, é um dos primeiros problemas do filme, e uma das primeiras denúncias das limitações do filme. Valerian e Laureline não são apenas personagens complexos – eles só funcionam em contraste. Ou seja, era necessária uma direção de atores cirúrgica e um roteiro que possibilitasse esse desenvolvimento. Não existe nem uma coisa nem outra aqui.
Na história do filme, após recuperar um artefato de propriedade da Federação, os agentes Valerian (Dane DeHaan) e Laureline (Cara Delevingne) se veem envolvidos em uma grande conspiração. Mantidos às cegas pelo Comandante Arün Filitt (Clive Owen), eles precisam descobrir a verdade, que pode pôr em risco o delicado equilíbrio que existe na Cidade dos Mil Planetas – e também suas próprias vidas.
Para não “perder” tempo demais desenvolvendo a personalidade dos protagonistas, Besson simplesmente enxugou as nuances e complexidades do material original, tornando-os “um casal do barulho”, com ele se resumindo a ser um garanhão em dúvida se quer se assentar, e ela buscando um “verdadeiro amor” digno do seu coração. Toda a sofisticação da construção da personagem de Laureline, e toda a utilidade de Valerian nesse sentido, se perdem para que o diretor possa se focar em luzes coloridas, cenas de ação e bichinhos estranhos andando pelo cenário.
Isso implica, necessariamente, na péssima atuação de todos os envolvidos. O único que se salva é Rutger Hauer – afinal, difícil comprometer com alguns segundos em cena. Não, não é uma hipérbole. Segundos. Os infinitos cameos de figuras famosas são um bom exemplo do que é o filme Valerian – um imenso fan service para ninguém, já que poucos conhecem a HQ para gostar ou desgostar de qualquer coisa. A aposta de Besson é atirar para todos os lados de um blockbuster e ver onde acerta – em quase nada, como em qualquer tiroteio às cegas.
Como os que possuem maior tempo em cena, cabia a Delevingne e DeHaan tentar sustentar o filme. Uma modelo bonitinha que ainda não mostrou a que veio em termos de atuação e um ator ainda em formação, com toda a expressão de um adolescente introvertido. Faça as contas. Em determinado momento, as tentativas de ambos de fazer parecer que existe alguma química entre os protagonistas é até constrangedora. Seria melhor se eles se dedicassem apenas a correr e atirar luzinhas coloridas.
Não que isso seja necessariamente culpa deles – como dito, não há roteiro a ser interpretado em Valerian, o que dificulta a vida de qualquer ator, principalmente àqueles que precisam atuar quase que 100% do tempo contra uma tela azul/verde. É necessário um poder de concentração e imersão dignos dos melhores atores, e um diretor que tenha visualizado com perfeição o que quer de seu filme e de seus atores. Desnecessário dizer que não existe nada disso aqui e DeHaan e Delevingne parecem apenas se divertir como duas crianças na aulinha de educação física, enquanto esperam o professor decidir com qual bola eles vão brincar.
Visualmente e narrativamente ordinário
É um fato que um dos méritos da HQ de Mézières é o seu visual psicodélico de space opera – muito à frente do seu tempo, como muito se produzia naquele período dos quadrinhos europeus, a exemplo das obras de Moebius (O Mundo de Edena e Os Olhos do Gato). Então, era natural e esperado que houvesse uma dedicação particular ao aspecto visual do filme, para exprimir toda a exuberância do material original. Essa tônica até se cumpre nas primeiras etapas do filme – a montagem inicial é, ao som de Space Oddity, é de encher os olhos.
Mas, infelizmente, após a sequência do Grande Mercado, toda a criatividade visual do filme se encerra, e nós temos uma continuidade de efeitos especiais comuns e pouco surpreendentes – indignos, na sua maior parte, da originalidade da HQ. Como dito, são apenas luzes coloridas e bichinhos estranhos, cuja única função é nos tornar indulgentes com uma narrativa ordinária e absolutamente previsível.
É até difícil falar do “plano mestre” que envolve a trama sem dar spoiler – não pelo seu brilhantismo, mas pela sua supracitada previsibilidade. O amigo espectador que não sacar o que está acontecendo na primeira meia hora de filme ou está muito distraído com as luzes coloridas e a pipoca, ou quer muito gostar do filme. De outra forma, qualquer exercício mental de alguns segundos vai induzir, com precisão, ao resultado final da trama depois de mais de duas horas.
Mas o pior não é sequer sua previsibilidade – que poderia ao menos render um bom filme de ação – mas a pieguice rasteira na qual o filme se escora para chegar aos seus últimos momentos; que, incidentalmente, também representa uma imensa e clara oportunidade de ao menos levantar uma pequena bola ética que livraria o filme, talvez, de ser um completo desperdício. Mas Besson decide bater um tiro de meta monstruoso com essa bola, justificando as ações finais dos protagonistas com base no “amor”.
E antes que o amigo leitor ache que essas linhas são escritas por um coração amargurado e solitário (ele vai bem e acompanhado, obrigado), basta prestar um mínimo de atenção ao desenvolvimento narrativo para perceber que a bobagem do “amor” não se encaixa de forma alguma no contexto do filme até ali. Após assistir ao filme, pense nessa analogia, amigo leitor: é como se eu explodisse sua casa, matando sua família no processo, deixasse você morando na rua, cagasse uma montanha para você durante décadas e, depois desse tempo, o amigo de um amigo meu decidisse lhe dar um único tijolo como compensação – em nome do amor que ele sente por outra pessoa. É sério!
Assim, o filme Valerian e a Cidade dos Mil Planetas pode ser resumido dessa forma: um filme visualmente bonito, mas comum, com uma trama rasteira e, de certa forma, piegas e constrangedora. Um desperdício do imenso potencial que o material original oferecia – revolucionário, visualmente deslumbrante, narrativamente complexo e inteligente.
Mas estamos na era dos blockbusters. Talvez eu devesse colocar uma luzinha neon piscando e uma explosão no início do texto para conseguir mais acessos…
PS: A Rihanna está no filme. Fim.