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Roda Gigante – O ressurgimento de Woody Allen!

Em Roda Gigante, Woody Allen abandona o piloto automático

Se o filme Roda Gigante (Wonder Wheel) nos prova algo, é que Vittorio Storaro foi uma importante adição à filmografia de Woody Allen. Na história do cinema, é muito comum ver cineastas consumarem o seu estilo ou fazerem os melhores filmes somente quando começam a trabalhar com um determinado diretor de fotografia. Por exemplo: o que seria do cinema de Ingmar Bergman se ele não tivesse se encontrado com Gunnar Fischer na primeira metade da carreira e Sven Nykvist na segunda, quando também passou a filmar em cores? As ousadias de Orson Welles em Cidadão Kane teriam existido completamente caso Gregg Toland não estivesse a bordo? E alguns dos principais filmes de Stanley Kubrick conteriam a mesma radicalidade sem a presença de John Alcott?

Crítica do filme Roda Gigante.

Roda Gigante

Claramente, há muitos fatores que contribuem para o sucesso de tais parcerias, mas o principal talvez seja a confluência de duas almas similares, que buscam e desejam transmitir as mesmas coisas. No caso de Woody Allen, isso se torna evidente. Quase todas as fases do diretor são marcadas por períodos em que a presença de um certo diretor de fotografia é constante. Na principal delas, quando precisou estabelecer uma assinatura e fazer a transição das primeiras comédias para os filmes mais verborrágicos e psicologicamente densos, o estilo sisudo de Gordon Willis foi de vital importância; alguns dos filmes de forte contraste, por sua vez, tiveram o dedo de Sven Nykvist; e no momento em que Willis se afastou, a versatilidade de Carlo Di Palma foi uma ferramenta importante para os experimentos estéticos subsequentes.

Já nos dias de hoje, depois de trabalhar por uma década ao lado de Darius Khondji (o mesmo de Z – A Cidade Perdida), Allen passou a colaborar com o histórico Vittorio Storaro e o resultado não poderia ser melhor. Após anos numa espécie de torpor artístico, em que as ideias se reciclavam de maneira indiscriminada e a mise-en-scène revelava uma certa apatia técnica, ele parece ter acordado e revivificado a sua paixão pela arte. Se no ótimo Café Society a trama corriqueira já era constantemente superada pela riqueza barroca do diretor de fotografia e do opulento desenho de produção, no filme atual, a surpreendente história é embalada por uma das composições imagéticas mais complexas já criadas por Allen.

No entanto, dizer que tudo isso se deve a Storaro é injusto, uma vez que há traços do cineasta em cada fotograma de Roda Gigante. O que o diretor de fotografia parece ter feito é reacendido uma chama no artista nova-iorquino e “emprestado” a sua destreza com as luzes para que esse ressurgimento se tornasse possível. Por outro lado, há ineditismo no longa. Em nenhum outro filme de Allen há tanta profusão de técnicas de iluminação. A principal é a luz estourada que invade a casa dos personagens principais e cria uma atmosfera surreal e fantasiosa, a qual também é adquirida através das cores saturadas dos figurinos e cenários.

Crítica do filme Roda Gigante.

A segunda que mais se destaca são as alterações na luz principal. A cena em que a protagonista interpretada por Kate Winslet (vista recentemente em Depois Daquela Montanha) faz um monólogo debaixo do calçadão é um exemplo perfeito desse recurso. Enquanto narra as maravilhas do seu primeiro amor, a key light respeita a lógica visual do momento e ilumina contundentemente a personagem, somente para desaparecer instantes depois, no exato momento em que ela começa a falar sobre as decepções que se seguiram ao seu idílio romântico. Há outras cenas em que isso se repete, sempre através de jogos intrincados de luz e sombra.

Além disso, principalmente nas situações que se desenrolam no principal cenário da trama, os movimentos de câmera concebidos pelo cineasta e o diretor de fotografia estão entre os mais ousados de ambas as filmografias. Geralmente, são planos longos repleto de mudanças de foco, de iluminação e de tom, exigindo dos técnicos uma entrega física invejável e dos atores, uma perfeita compreensão de todos os estágios emocionais que habitam os seus respectivos personagens (daí o título do filme). Essa quantidade de alterações presentes em um único ambiente indica um total domínio do espaço diegético por parte dos realizadores

Eugene O’Neill e as tragédias norte-americanas

Contudo, por mais brilhante que seja o trabalho de Storaro, Allen e dos demais técnicos (com um destaque especial para a mixagem de som, que faz questão de ressaltar os barulhos de tiro sempre que a protagonista tem um rompante de loucura), o filme precisaria entregar um drama à altura para que o filme sustentasse a atenção do espectador. Felizmente, sob uma aparência simples, o texto de Roda Gigante é um dos mais ricos que Allen escreveu nos últimos anos. Investindo nos conflitos de uma família disforme e cuja imagem é um símbolo de erros pretéritos, o roteiro nos propõe uma espécie de tragédia norte-americana.

Aliás, há muito de Eugene O’Neill no longa, mais especificamente, da peça Longa Jornada Noite Adentro. Emular clássicos do cinema e da literatura sempre foi uma das maiores marcas de Allen. Até o mais recente filme (Café Society) era a tentativa de recriar o universo de O Grande Gatsby. A nova obra, por sua vez, tanto na ambientação – uma parte considerável da narrativa se desenrola em um único local – quanto nos moldes trágicos em que a história vai se encaixando, remete constantemente à tradição dramatúrgica dos Estados Unidos do século XX.

Crítica do filme Roda Gigante.

Entretanto, é uma opção de Allen não abraçar totalmente a tragicidade e trabalhar com alguns itinerários cômicos que lhe são familiares, como a dupla de mafiosos e o irlandês beberrão interpretado por Jim Belushi (figuras recorrentes no universo do cineasta). É possível que parte do público se incomode com essa “oscilação” narrativa e ache que a comédia atenue o drama ou vice-versa. Porém, a simbiose entre os dois tons é o veículo perfeito para a seguinte constatação: a vida humana é frágil. Se tivesse adotado completamente o caráter trágico da história, os personagens participariam de um drama cósmico e transcendente. Da maneira em que o filme foi feito, eles são apenas “vítimas” dos próprios erros, um drama quase banal desenvolvido em uma parte qualquer do mundo.

E que essa história tenha a aparência de uma grande obra cinematográfica e flerte com a grandiloquência é de uma ironia assustadora.

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